quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Acasos e Cafés

Não posso ser tocado por estes tristes olhos, que me partem o coração, sem ser tomado por uma desoladora melancolia. Prenhe de inspiração e tristeza, lembro-me com saudades de uma crescente admiração, de uma célere paixão que deixou um vazio quando partiu. E sozinho na mesa do restaurante, penso no instante em que nos cruzamos perguntando-me por que não a convidei para um almoço? Uma gentileza apenas, nada mais.
Mas em meio ao prazer e as delícias de sua presença me recordo da culpa e do desalento daquela ausência. E me questiono sobre as causas desta eterna contradição. Do porquê de estarmos sempre presos entre pares de opostos que tiranizam nossos sentimentos. Oposições que me impedem de recordar a satisfação daquela companhia sem associá-la ao dissabor da falta.
No momento seguinte, uma certa moderação me sugere que foi melhor assim, que no final das contas é melhor evitar os excessos das paixões. Porém, suspeito da veracidade neste comedimento que se imiscui sorrateiramente nos meus pensamentos, pois entre cada garfada da enfastiada refeição, suspendo o olhar e busco por aqueles tristes olhos no rosto das passantes.
Só então me dou conta deste devaneio, e como que desperto de um profundo sono, balanço a cabeça na tentativa de dissolver as lembranças que me assolam.  Recobro a atenção, cruzo os talheres e peço um café à garçonete que gentilmente recolhe meu prato. Ela é bela a sua maneira, penso enquanto admiro sua pele morena. Inspiradora, ressalto encantado com sua naturalidade ao mover-se.
Enquanto a mirava devo ter relaxado a musculatura do maxilar, pois ao passar os cabelos sobre a orelha ela me lançou um sorriso um tanto constrangido com a minha cara de pasmo. Sim, inspiradora! Recordo entusiasmado enquanto busco por uma caneta na minha pasta, um guardanapo há de servir, creio que serão apenas algumas linhas.
 Minha nova musa traz o café à mesa ao passo que rabisco atrapalhadamente no papel. Açúcar ou adoçante? Nenhum, respondo ao mesmo tempo em que me debato com as palavras sobre a mesa. Após algumas tentativas frustradas, amasso o pedaço rabiscado de guardanapo e o atiro na lixeira. Acabo de lançar fora trechos involuntários de um poema sobre seus tristes olhos.
A fumaça do café desprende-se lentamente da xícara, penso novamente nas condições que perpassaram nossa relação e nas razões destas constantes recaídas. Se ao menos a situação fosse diferente, não hesitaria em arriscar e me lançar sobre aquelas súplicas mudas, resgatá-la da prisão de contido desespero que construiu para si. Porém a situação me faz refém, cingido entre o receio e a saudade, sinto a necessidade de avançar, mas não encontro forças ou disposição para esquecê-la.
Perdido neste limbo de emoções, busco por algo que sei que não posso ter. Termino o último gole do café e investigo o fundo da xícara na esperança que em sua borra esteja impresso o futuro. Aceitaria-o resignadamente longe dela, contanto que não houvesse alternativas possíveis. Pois a origem maior da minha angústia advém da possibilidade de destinos alternativos, de que o peso das consequências resida inteiramente sobre os ombros de nossas escolhas e que simples atos, como um convite não realizado para um almoço, possam ser decisivos no curso de nossas vidas.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Sagração da Primavera

Que tal espiarmos a lua lá fora, ele sugeriu, tomar um ar e nada mais. Ela sabia que este tipo de convite nunca é gratuito ou desinteressado, mas a festa estava enfadonha e o calor opressivo. Além do mais, ele não era de todo desagradável, fora o ar petulante e as perguntas ensaiadas parecia ser uma pessoa interessante. Mas bem que podia estar enganada, como já ocorrera outras vezes. De qualquer forma era uma quente noite de primavera e um cigarro ao ar livre não faria mal.
A varanda era realmente grande, repleta de vasos e ornamentos exóticos, vastas folhagens escorriam pelas paredes e ramos das mais diferentes flores emanavam seus aromas em todos os cantos. A lua estava cheia e imensa, tal qual um enorme holofote suspenso no céu, lançava sua pálida luz sobre aquele jardim improvável, cravado a onze andares do chão no centro daquela cinza floresta de concreto.
Seu papo mole continuou por alguns minutos, chocando-se contra o muro de indiferença e tédio erguido por ela. Todavia o ambiente estava envolvente demais para que as coisas permanecessem nesta condição. Relativamente frustrado ele calou-se e passou a contemplar o céu parcialmente estrelado, acendeu um cigarro para ela e relaxou um pouco em suas investidas.
O efeito foi quase instantâneo, entre as lentas baforadas que se dissolviam no céu noturno, ela passou a reparar nos seus traços e movimentos tranquilos. Sua presença passou a inspirar-lhe conforto e segurança, mais que isto, passou a desejá-lo. E sem que pudesse perceber sorria com sinceridade. Ele, contudo, percebeu a mudança.
Vacinado, se manteve em silêncio. Aproximou lentamente seu rosto do dela e sem desviar o olhar beijou-a. A noite, que já estava quente, incendiou-se, e um calor tremendo invadiu seus corpos. Cada centímetro quadrado de seus seres ansiava pelo contato, apertavam-se e tocavam-se vorazmente. Não havia mais ninguém na varanda além deles, mas inúmeras janelas dispunham-se de frente ao parapeito. A cidade fervia e pulsava diante deles. Incontáveis vidas transcorriam naqueles retângulos acesos e isto os contagiava de uma forma inexplicável.
Sua mão percorria toda a extensão do corpo dela, seu vestido, outrora refrescante e confortável, grudava na pele devido ao suor e a sufocava. O barulho da festa, das pessoas rindo e mentindo no salão, abafava seus ruídos crescentes. Arfavam e gemiam, mordiam-se e se desejavam com uma intensa volúpia. Sem maiores cerimônias ele a virou contra a mureta, em direção à noite que os assistia, e beijou sua nuca enquanto pressionava seus quadris. Tocou a lateral do seu joelho com a ponta dos dedos e subiu por suas pernas quentes até sua delicada calcinha.
As ruas abaixo deles rugiam e cuspiam pessoas por todos os lados. Como mariposas numa noite tropical elas iam e vinham em direção às luzes, chocando-se aleatoriamente. Ela gemia e mordia-se com suas carícias, estava completamente molhada e implorava por seu contato. Sem poder mais se controlar ele arrancou-lhe a roupa íntima, abriu suas calças e tomado pela excitação libertou-se de suas vestes.
A noite seguia em plena atividade quando levantou seu vestido e a penetrou com prazer. Todos estavam acordados, bebendo, cozinhando, brigando ou latindo. Toda a cidade pulsava ritmada por aquele calor embriagante. Parecia que todos evitavam suas camas e moviam-se naquela noite. E eles pulsavam e moviam-se juntos com a cidade, gemiam alheios a tudo e a todos, mas ao mesmo tempo, em consonância com aquele imenso organismo orgástico, rumo ao clímax absoluto.
Porém toda a efervescência tem seu fim, e quando o gozo acaba a normalidade volta a imperar. Os constrangimentos retornam e a sintonia se desfaz. As luzes gradativamente se apagam e a vida desacelera. Tudo se recompõe tão naturalmente que parece nunca ter ocorrido. Mas mesmo para aqueles que buscam esquecer, noites primaveris como esta sempre deixam suas marcas, seja nas calcinhas rasgadas ou em números de telefones inexistentes.  

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Origens

O grande perigo de ser criado entre lobos é que, apesar dos fortes laços de afeto, eles eventualmente devoram os mais fracos. Mas isto não ocorre com frequência, em geral, quando uma alcateia está bem regulada, ou seja, com os níveis hierárquicos bem definidos, os membros comportam-se como irmãos. Porém para tanto é necessário um líder, um indivíduo capaz manter coeso e organizado o grupo em torno de objetivos comuns.
A origem da minha alcateia remete a um passado assim. Era uma família pequena, mas bem sucedida, liderada por um lobo exemplar. Chamava-se Naború, um lobo cujo silêncio inspirava respeito. Era um animal fascinante, dotado de uma destreza e uma sabedoria que pareciam emanar diretamente da natureza. Sua linhagem derivava dos grandes lobos migrantes do norte e dizem que possuía irmãos duas vezes o tamanho dos lobos comuns. Embora não compartilhasse da dimensão avantajada de seus parentes era respeitado por sua comprovada astúcia e sabedoria.
Reza a lenda que antes de fundar nosso grupo Naború vagou solitário por extensos pagos na busca por algo que não tinha certeza. Impelido por um sentimento nômade de inconformidade percorreu imensas distâncias. Sempre em direção ao sul, atravessou as mais diversas paisagens. Enfrentou o frio de planaltos íngremes e infinitos, desceu rios imensos em direção a florestas úmidas, tão densas que o sol não tocava o chão. Atravessou desertos de sal e calor, extensos banhados repletos de aves de todas as cores e repteis traiçoeiros, mas nunca sentiu-se com vontade de parar.
Tanto vagou na direção meridional que a paisagem tornou-se branca, grandes geleiras passaram a habitar sua vista e por lá ficaram tanto tempo que se esqueceu de como era o horizonte sem elas. Vagou por semanas naquele ambiente diáfano. Até que um dia, faminto e exausto de tanta alvura, voltou-se para suas próprias pegadas, lembrou-se que não via nenhum outro rastro há muitos dias e retomou sua jornada sobre seus próprios passos. A volta foi muito mais difícil, por mais adaptável que fosse passou dias sem conseguir encontrar alimento em meio as constantes tempestades glaciais.
Com o passar dos dias a paisagem gradualmente ganhava novas cores e sua esperança de sobreviver aumentava, mas a exaustão era imensa. Morreria por pouco, pensou antes de recostar-se junto a um pequeno e solitário capão. Deitou sua cabeça sobre suas patas dianteiras e fechou os olhos para nunca mais os abrir. Porém seu olfato o salvou, um odor estranho cortou sua respiração numa brisa. Primeiro surgiu leve, quase indistinguível, em seguida veio tão forte que Naború levantou-se tencionando todo seu corpo. Um tropel acompanhado de guinchos aproximava-se rapidamente.
Assustado com tamanho alarido se manteve imóvel na mata, mas o som parecia cercá-lo. No instante seguinte um lobo bem menor que ele surgiu correndo por entre as árvores em sua direção, em seu encalço um grupo de javalis furiosos apareceu arrancando tudo a sua frente. Os javalis surgiram de todas as direções, Naború lutou para evitar suas presas afiadas e sem ter para onde fugir arreganhou seus dentes famintos e rosnou mais alto que os grunhidos horríveis das bestas.
Impelido pelo grupo um javali maior avançou enlouquecido contra Naború, o lobo esquivou-se da carga e antes que o javali pudesse se virar saltou sobre suas costas mordendo sua nuca. O couro do animal era espesso e parar sobre ele era uma tarefa impossível, mas a mandíbula de Naború era grande e todas suas forças estavam depositadas ali. Outros animais avançaram sobre ele enquanto o javali se contorcia e sacudia o lobo de um lado para o outro. Mas aos poucos a vida do javali se esvaiu e restaram apenas Naború, suas presas arreganhadas e um rosnado pavoroso.
Os outros javalis recuaram e desistiram do ataque, aos poucos seus ruídos foram perdendo-se na paisagem. Ainda arfando e rosnando, Naború foi aos poucos reduzindo sua tensão antes de mergulhar seu fuço no ventre do animal ensanguentado a sua frente. Enquanto se alimentava exausto lembrou-se da presença do outro lobo, levantou os olhos e divisou sua silhueta nas árvores próximas. Era um lobo bem menor que ele, mas estava cansado demais para poder brigar pelo javali. Deu mais duas grandes bocadas, recuou alguns passos e desabou no chão. Antes de perder a consciência, porém, percebeu a aproximação de diversos outros lobos...

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

A Queda


Bastou apenas um erro,
um instante de desmedida confiança.
Para que a incontornável força da gravidade
exercesse todo o meu peso sobre mim.

Sob o mesmo impulso,
outro titã da física se impôs.
Impedindo-me de voltar ou desfazer,
o ato registrado e consumado pelo tempo.

E com a mesma rigidez costumaz,
ele se aplicou na sequência do evento.
Não houve espaço para flutuações ou suspensões,
apenas para a brusca queda imediata.

Porém a mente é tão rápida quanto à física.
E mesmo diante do inesperado,
é capaz de formular com precisão,
pelo menos uma constatação.

Morri. Lembro-me de ter pensado
antes de atravessar toldos e varais.
Mas ao contrário do esperado,
entre roupas e xaxins, eu havia sobrevivido.

Penso nas probabilidades da situação,
nos seus potenciais desfechos trágicos.
E agradeço pelos imponderáveis em questão,
pelas improváveis e impossíveis conclusões.


domingo, 25 de agosto de 2013

Reflexões Noturnas

“A coruja de Minerva só alça seu voo ao cair da noite”. (Hegel, Filosofia do Direito).

É sob a vigília do crepúsculo que a vida adquire novos significados. Os acontecimentos do dia, banais em sua cotidianidade, revestem-se de intricados e insondáveis sentidos. Sob o peso do silêncio noturno todo suspiro eleva-se a condição de desespero e cada tique do relógio ressoa sem concorrência pelo espaço da cozinha. O copo d’água sobre a mesa, o reflexo distante no vidro da janela, detalhes da mobília parcialmente iluminados pela porta entreaberta do banheiro, tudo ganha contornos de relevância e reflexão.
Sob a atmosfera da noite repensei minha vida inúmeras vezes. Invariavelmente decidia-me pela mudança brusca e imediata. Abandonaria a relojoaria na manhã seguinte, anunciaria a venda da loja e com dinheiro ganho iniciaria um novo negócio. Porém, ao despertar a convicção gradualmente dissolvia-se como os sonhos da noite anterior. Faltava-me a perspicácia e a frieza da perspectiva noturna. Durante a claridade ofuscante do dia sentia-me incapaz de largar a relojoaria herdada de meu pai, que por sua vez herdara do meu avô.
Era um ponto conhecido na cidade, tradicional, digno da mais ortodoxa confiança. Situava-se sob os arcos do viaduto da Avenida Borges de Medeiros, sua mera localização inspirava apreço, era uma pequena, mas respeitável, loja de conserto e venda de relógios. E apesar de experimentar um contínuo e abruto declínio dos rendimentos, permanecia disponibilizando os mais precisos serviços de relojoaria que esta secular tradição pode oferecer. Contudo a qualidade e a tradição dos serviços não bastavam para manter as portas abertas. Com o advento dos celulares e das máquinas digitais ninguém mais ligava para a precisão e o rigor dos minutos, os relógios tornaram-se quase descartáveis.
Por uma fina ironia do destino o negócio, que era baseado no controle do tempo, transformou-se em uma loja anacrônica. Um pedaço do passado incrustado no centro da cidade imediata. Meu principal consolo era a loja de discos que se mantinha aberta alguns metros adiante do meu estabelecimento. Às vezes, quando passava por lá em direção ao mercado, detinha o passo e espichava o ouvido na espera de uma canção que me enviasse de volta a uma época remota. Uma nostalgia sem fim tomava conta de mim e quase chorava ao ouvir o lamento tornar-se distante e perder-se por entre motores e murmúrios urbanos.
Mas esta era uma situação insustentável, qualquer dia destes a resolução noturna haveria de prevalecer diante dos fatos. Porém o peso dos anos exercia sua influência na balança das decisões. Sob a claridade diurna o olhar austero da fotografia de meu avô era imbatível, não havia argumentos que penetrassem seu cenho cerrado. Eu estava preso em um impasse cronológico de difícil resolução.
Eis que uma noite, meio embriagado e sonolento, uma coruja agourenta invade meu ordinário apartamento. Voa apavorada em círculos pela sala, debatendo-se contra quadros, mobílias e cortinas. Quando o turbilhão termina ela encontra-se pousada sobre um velho relógio de pêndulo no centro da peça. Atirado ao chão, com as mãos sobre a cabeça, me volto assustado para ave noturna. Sua cabeça vira noventa graus em minha direção, seu olhar inquisidor me atravessa por alguns instantes e emitindo um som horroroso voa pela janela de volta para a noite.
Me recomponho e corro em direção a persiana por onde o animal entrou, fecho-a com rapidez sem nem olhar para fora. Paro um instante e percebo que meus batimentos estão acelerados, e entre as batidas do meu coração ouço novamente aquele pio macabro. Estremeço completamente e suspendo até mesmo minha respiração, aguço minha audição o máximo possível e permaneço imóvel diante daquela tensão. Petrificado, captava apenas o som de minha aflição quando o velho relógio soou meia noite em meio ao silêncio noturno.
Minhas pernas tremeram e quase desfaleci com as badalas. Apoiei-me na parede próxima e percebi uma moldura quebrada no chão. Ainda tremendo juntei o velho quadro já imaginando de qual fotografia tratava-se. Era o retrato do meu avô, que outrora tão soturno, encontrava-se agora desfigurado por um rasgo que lhe atravessava a face de ponta a ponta.
Mais tarde naquela noite a coruja voltou para atormentar meus sonhos diversas vezes, sonhei com aves imensas, garras, pios e barulho de asas. Mas ao despertar na manhã seguinte senti que um fardo enorme havia sido removido de minhas costas. Pela primeira vez parecia-me que a decisão pertencia ao presente.

domingo, 23 de junho de 2013

De volta à estrada


Encheu o saco. Após um semestre repleto de pressões, picuinhas e reclamações decidiu largar tudo por um tempo. Precisava fugir daquela série de compromissos e prazos que o oprimiam, que lhe tolhiam a liberdade e a criatividade. Ultimamente sentia-se cada vez mais preso a sua pesada rotina de trabalho e estudos. Sabia ser em parte responsável por ela, porém agora lhe parecia tão sem propósito que resolveu abandoná-la na primeira oportunidade que houvesse.
Não tardou a forjá-la. Durante uma consulta de rotina com a psicóloga de sua empresa declarou um nível de estresse imenso e uma incapacidade de raciocinar momentânea. No dia seguinte estava afastado de suas atribuições profissionais. Abandonou as cadeiras que cursava sem consideração alguma e começou a projetar sua fuga para outra realidade. Não sabia exatamente para onde, mas imaginava um lugar onde tivesse menos atribuições sem sentido e que lhe proporcionasse novas e autênticas experiências.
 Cultivava esta ideia há muito tempo. Tinha plena consciência do idealismo envolvido nesta empreitada e das dificuldades inerentes a este tipo de experiência. Porém não se deixaria abalar pelas críticas e tentativas de dissuasão dos poucos amigos para quem havia revelado seus planos. Coisa de guri, bem sabia. Mas era exatamente isto que o motivava e o interessava na ideia. Buscava, entre outras coisas, o retorno daquela perspectiva, daquele deslumbramento juvenil e das expectativas relacionadas. Iria à busca de uma espécie de esperança perdida.
Precisava renovar suas lentes e apenas uma experiência destas seria capaz de remover toda sujeira e marasmo que estreitavam sua visão de mundo atualmente. Após uma ansiosa semana de preparativos embarcou em um ônibus rumo Florianópolis. Lagoinha do Leste era o seu destino, um parque de proteção ambiental isolado por morros e o mar. Do seu assento no ônibus, ainda na rodoviária, já podia sentir seu estado de espírito alterando-se. Montes de mofo e bolor pareciam soltar-se de seus ossos, o outono da alma dissipando-se a cada quilômetro rodado na estrada.
 A paisagem em movimento na janela ia revigorando a expectativa de coisas novas e deixando para trás compromissos, prazos e agendas. Sentia-se leve e tranquilo como há muito não experimentava. Em sua cabeça figurava agora um sumário “foda-se” para o futuro, o protagonismo pertencia ao presente.
Já na ilha, fez uma rápida visita a parentes queridos e dirigiu-se a remota praia isolada sem grandes explicações. Para acessá-la encarou uma trilha de pedras perigosa, enquanto choviam cântaros sobre sua cabeça, molhando barraca, equipamentos e ossos. Um primeiro revés, que fez com que pela primeira vez encarasse sobre diferentes termos sua aventura. Porém nada suficiente para abalar suas resoluções.
A primeira noite foi horrível. Todos seus equipamentos estavam molhados e chovia tão forte sobre a lona de sua barraca que mal podia ouvir seus próprios pensamentos. Mas a noite não durou para sempre, e o dia seguinte trouxe toda beleza e crueza da natureza preservada da ação humana. A simples visão do sol nascendo sobre as nuvens no mar foi suficiente para convencê-lo que aquela era a escolha mais acertada.
Logo nos primeiros dias conheceu algumas pessoas interessantes que estavam, assim como ele, acampadas pelas dunas entre a vegetação. Alguns habitavam aquelas paragens há muitos anos, sobrevivendo com recursos naturais e poucos mantimentos que eram deixados pelos turistas durante as altas temporadas. Em pouco tempo aprendeu muito sobre o tempo, sobre mariscos e caranguejos, sobre experiências com cogumelos e sobre a ausência de confortos básicos.
Durante algum tempo manteve a empolgação original, apreciando cada instante daquela forma de vida mais elementar. Porém com o passar dos dias a novidade de suas experiências foram perdendo o vigor. Afastou-se dos seus companheiros acampados na esperança de estarem contaminando sua percepção. Solitário, permaneceu animado por mais alguns dias, mas não tardou a inquietar-se novamente.
Sentado sobre o costão rochoso, ouvindo o interminável estrondo do mar contra as inquebrantáveis pedras, percebeu que sua experiência havia atingido seu limite. Mais que isto, percebeu o impasse em que se encerrava. Na busca por uma experiência completamente nova havia rotinizado a aventura.
No dia seguinte embarcou num ônibus de volta para a casa. Magro e maltrapilho, levando apenas alguns pertences que seus companheiros de acampamento não quiseram, voltou a sentir-se tranquilo novamente. Sabia que aquela sensação não duraria muito, mas estava decidido a curti-la enquanto durasse. Pois compreendeu que a insatisfação era o estado predominante da condição humana, mas também o motor de sua transformação.

sexta-feira, 31 de maio de 2013

A Lenda do Homem Magro

Maldito Mr. Jones, perambulando pela noite, assustando criançinhas e roubando roupas nos varais. Sem nenhum resquício de caráter ou prudência, um legítimo lunático a solta pelas ruas de lugar nenhum.  Um filha da puta da vida real, chantagista de ocasião, hipócrita de profissão. Ninguém acredita, mas ele existe.
Basta um rápido vislumbre no fundo do poço para que sua silhueta esguia apareça e projete sua sombra. Aquele triste momento, quando nada parece capaz de piorar, é a deixa para sua entrada morosa. Como um rato saindo do esgoto, uma barata do bueiro, ele surge do canto mais escuro e fétido em nossa direção.
Ébrio e claudicante, ele rasteja das sombras até nossos ouvidos com propostas indecentes. Amoral em sua essência e imoral por preferência, aproveita-se de qualquer breve instante de fragilidade para cooptar nossos corações balançantes. Palavras ácidas escoam docemente de seus lábios, são mentiras honestas que penetram no âmago de nossas mentes.
Quase sentimos prazer em odiá-lo. Vil, louco e asqueroso, um pária desprezível. Porém impossível de ser ignorado em sua figura. Enquanto nos fala algo gosmento escorre do canto de sua boca, uma sucessão de tiques e convulsões nervosas percorre sua cara. E uma nítida impressão de que uma cauda balança sob a sombra de seu corpo impede qualquer sentimento de confiança.
Mas seu cinismo impressiona, seus argumentos elaborados convencem. Com uma habilidade magistral toca harmonicamente todos os podres da humanidade, ascendendo das mentiras mais fúteis, em progressão pelas hipocrisias cotidianas, até o clímax das grandes corrupções. Uma obra instigante, inspirada na mais crua realidade, mas incrivelmente desoladora.
 Pouco sobra de nossa empatia com as pessoas após este discurso. Seu sorriso medonho nos afronta, somos oprimidos por aqueles dentes podres. E lentamente, como o gato de Cheshire, seu corpo  delgado desaparece, deixando para trás apenas aquele amarelo sorriso de escárnio. Atônitos, percebemos que, sem que nos déssemos conta, uma semente maldita foi plantada em nosso peito.
Logo uma inacreditável dor de barriga nos assola, nos contorcemos e deitamos no chão urrando. Nada mais parece ter sentido, sabemos que algo está acontecendo, mas não sabemos o que é. Abrimos os olhos na completa escuridão, uma percepção alterada da humanidade nos ocorre, um desprezo por tudo que nos cerca reina sobre qualquer outro sentimento.
Eis que agora perambulamos pela noite, sem nenhum resquício de caráter ou pudor. Como um legítimo lunático a solta pelas ruas de lugar nenhum, um filha da puta da vida real, oportunista de ocasião, hipócrita de profissão. Como um exímio e amaldiçoado Mr. Jones.

terça-feira, 23 de abril de 2013

Poema do Desespero


Nada revela ou esconde sentido algum,
as coisas são como são.
Não há ordem suprema ou inteligência mística
que zele pela humanidade.
Somos amontoados de caos,
sobrepostos uns aos outros aleatoriamente.
Desorientados como náufragos,
agarramo-nos ao primeiro ponto fixo que aparece.
Mas tudo é fluido.
E para fugirmos do desespero,
deliramos oásis e formulamos regras para acessá-lo.
Porém não há salvação,
para aqueles que não estão perdidos. 

terça-feira, 19 de março de 2013

Dama da Lua


Apenas aqueles que já tiveram a oportunidade de se relacionar com estes seres fantásticos atestarão a veracidade de minhas palavras. No princípio, não aparentam mais que o habitual, circulam entre nós como se nada de extraordinário os envolvesse. Porém, conforme os conhecemos melhor nosso interesse tende a aumentar. Suas particularidades tênues, mas surpreendentes, passam a nos encantar em sua crescente beleza e magia.
Não suspeitei de nada quando a vi pela primeira vez, regular como a maioria das garotas que conhecia na época. Mas os indícios estavam lá, um exame mais atento de sua figura revelaria aquele brilho plácido no olhar, brilho que no futuro me seria tão familiar. Analisando em retrospectiva não hesitaria em afirmar que fui enfeitiçado. Semanas passaram como dias, meses como semanas. Vivi períodos intensos sob sua influência mágica, viagens, festas, transas, tudo isto somado a uma dependência cada vez maior de sua presença.
Contudo, havia certa inconstância em suas atitudes. Como se atravessasse diferentes fases ao longo do tempo. Em geral mulheres são seres instáveis, sensíveis a mudanças climáticas ou hormonais capazes de afetar seu comportamento. Porém nunca tinha conhecido uma que sofresse com as alterações astronômicas. Não me refiro aqui à influência dos signos do zodíaco, mas de um corpo celeste em particular. A lua.
Variados tipos de especulações sugerem a influência da lua sobre os organismos humanos. Tal como sobre as marés, a gravidade lunar seria capaz de afetar nossos humores e disposições. No entanto nada se compara as alterações sofridas por esta dama a quem me refiro. Capaz de intercalar períodos de imensa apatia com dias de pura euforia, seu bom humor contagiante dava lugar a uma indiferença glacial de uma semana para outra. Tornava-se distante, fria como a noite, e insensível a qualquer apelo meu.
Demorei muito até admitir a dinâmica desta oscilação comportamental. Afinal, há muitas outras forças atuando sobre os seres humanos antes da lua e suas quatro fases. Porém percebi que na sua intricada relação com o satélite essas possuíam um papel fundamental. Todavia, outro aspecto além das estranhas agitações relacionadas às fases da lua foi decisivo para mudar minha opinião. Numa noite particularmente marcada por excessos etílicos, ela deixou escapar palavras desconexas sobre certa descendência de uma linhagem mística e sobre filhos de Ogum.   
Tentei em vão retomar o assunto diversas vezes. Porém nunca mais obtive qualquer informação de seus lindos lábios. Determinado a descobrir mais sobre o assunto, iniciei uma pesquisa por conta própria. Busquei em todo tipo de fonte conhecida, mas não encontrei nada muito além de esoterismos e seitas de malucos.
 Preso entre uma ideia absurda e a total ausência de informações relevantes, passei a vigiá-la constantemente. Documentei e registrei cada alteração de seu instável humor na busca por uma conexão com as transformações lunares. Porém, para desespero de minha racionalidade não conseguia estabelecer nenhum padrão que coincidisse suas disposições com os movimentos da lua. Parecia haver alguma coincidência nos ciclos, mas não nos comportamentos.
Aguardava arroubos de ira, e era surpreendido por períodos de intenso afeto. Preparava-me para uma semana de plácida monotonia e deparava-me com noites de lascívia e volúpia. Contrariado, por vezes forçava e estimulava o comportamento esperado. Contudo obtinha em geral pouco ou nenhum sucesso.
Por fim suas atitudes pararam de oscilar. Apresentava, na maioria do tempo, uma insatisfação generalizada. Atordoado com aquela estabilidade, passei a atormentá-la para que revelasse sua origem mística e conexão com o satélite lunar. Foi o fim do nosso relacionamento. Após este evento permaneci por dias arrasado, sentia-me extremamente culpado e cheguei mesmo a duvidar de minhas capacidades mentais.
Hoje, porém, analisando as datas dos acontecimentos e cruzando-as com o calendário lunar percebo que um fenômeno fundamental escapou de minha atenção. Um acontecimento raro, chamado superlua estava para ocorrer dias antes de terminarmos. Fato que provavelmente explique seu comportamento estável e desfaça esta loucura em que me encerrei. É preciso que seja assim, pois caso contrário, não haverá outra forma de conviver comigo mesmo sob a sombra desta culpa.  

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Provérbios Populares


Sofia observava o horizonte atentamente. Admirava a beleza do costão rochoso ao encontrar-se com o mar enquanto meditava sobre seus problemas cotidianos. Dilemas banais, mas que insistiam em atormentá-la, pareciam cada vez mais insolúveis aos seus olhos. Subitamente, como se migradas de sua mente confusa, nuvens escuras começaram a despontar no horizonte.
Como um tropel de corcéis negros alados elas avançaram. Rugindo e ribombando, carregando o ambiente com sua ameaça iminente. Vinham do sul. Atravessavam o oceano e erguiam-se sobre o costão da enseada. Um quarto do horizonte encontrava-se agora coberto, enegrecido pela tempestade que se alastrava.
Um misto de terror e euforia correu pelas veias de Sofia. Amava tempestades de verão, com suas rajadas de vento eletrificadas e relâmpagos violentos. Porém nunca havia se encontrado com uma numa situação tão vulnerável quanto esta.
Estava abrigada numa cabana alugada na vila dos pescadores, próxima a praia. Uma residência humilde, construída pelos próprios pescadores para receber turistas no verão. Uma estrutura ótima para essa finalidade, mas pouco confiável como proteção contra vendavais.
Sofia voltou apressada para vila em meio a janelas que estouravam contra esquadrias e mães nervosas que recolhiam suas proles para dentro das casas. Sua pequena cabana parecia-lhe ainda mais frágil diante do vento que fustigava o telhado de folhas de palmeiras. Entrou correndo e fechou todas as aberturas o melhor que pode.
No interior, um silêncio perturbador reinava. Apenas sua respiração ofegante, ritmada pelo acelerado coração, era perceptível. Lá fora parecia que o temporal havia cessado. Nenhum uivo do vento, nenhuma gota no chão, nada além do ruído de seu próprio corpo.
Estimulada pela dose de adrenalina injetada em sua circulação, Sofia ansiava em espiar pela janela. Entretanto conhecia de cor muitos ditados da sabedoria popular, recitados infindáveis vezes pelo seu avô. E como a própria alcunha já afirma, tratam-se de pequenas doses de conhecimentos observados condensados em poucas palavras. Portanto, legítimos o suficiente para serem levados em consideração em momentos como esse.
Conforme suspeitado, tratava-se apenas da calmaria que precede a tormenta. Um breve hiato concedido pela tempestade. Uma tomada de fôlego talvez, um instante de armistício entre o céu e a terra antes da derradeira investida.
A cabana agora rangia e estalava completamente com o açoite dos ventos. Sofia tremia ainda mais. Porções enormes do telhado eram arrancadas e arremessadas quilômetros de distância. Porém, a despeito desta violência, o interior da cabana parecia ainda mais escuro. Como se o denso breu da tempestade adentrasse e preenchesse o pequeno abrigo.
Sofia estava apavorada. Encolheu-se atônita onde estava enquanto observava a cabana ser destroçada pela força do vendaval. Parecia-lhe que não havia nada que pudesse ser feito, seria inevitavelmente jogada como uma daquelas débeis folhas de palmeiras.
No entanto, motivada pelo pavor, uma lembrança antiga lhe ocorreu. Recordou-se de uma tempestade tropical como essa que experimentou, quando ainda criança, na companhia de seu pai. Na ocasião refugiaram-se sob um marco da casa da praia enquanto, á luz de uma pequena vela, rezavam para todos os santos que lembravam.
Reuniu então todas as forças que sobraram e correu para baixo do marco que separava a única peça do restante da casa. Encolhida contra o batente rezou para todos os deuses que conhecia, sem muita convicção. Pensou no pai e no quanto gostaria que ele estivesse junto a ela novamente. De alguma forma apenas esse sentimento a consolou, e passou a rezar para o próprio pai como um ser capaz de auxiliá-la nessa hora. Intermináveis instantes se passaram nesta situação.
Quando Sofia voltou a abrir os olhos a tormenta já havia passado e levado consigo grande parte da vila dos pescadores. Do seu frágil refúgio sobrou muito pouco. Sobre sua cabeça, além do velho marco, apenas o imenso céu azul. Qualquer vestígio de tempo ruim havia sumido.
Restou-lhe apenas uma sensação de clarividência e satisfação nunca experimentadas antes. Como fragmentos de um padrão até então incompreendido, que no instante seguinte adquire sentido, tudo passou encaixar-se na sua mente, nenhum problema mais parecia ter importância. E uma sentença latejou em seus lábios de maneira quase inaudível – depois da tempestade vem a bonança.