segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Origens

O grande perigo de ser criado entre lobos é que, apesar dos fortes laços de afeto, eles eventualmente devoram os mais fracos. Mas isto não ocorre com frequência, em geral, quando uma alcateia está bem regulada, ou seja, com os níveis hierárquicos bem definidos, os membros comportam-se como irmãos. Porém para tanto é necessário um líder, um indivíduo capaz manter coeso e organizado o grupo em torno de objetivos comuns.
A origem da minha alcateia remete a um passado assim. Era uma família pequena, mas bem sucedida, liderada por um lobo exemplar. Chamava-se Naború, um lobo cujo silêncio inspirava respeito. Era um animal fascinante, dotado de uma destreza e uma sabedoria que pareciam emanar diretamente da natureza. Sua linhagem derivava dos grandes lobos migrantes do norte e dizem que possuía irmãos duas vezes o tamanho dos lobos comuns. Embora não compartilhasse da dimensão avantajada de seus parentes era respeitado por sua comprovada astúcia e sabedoria.
Reza a lenda que antes de fundar nosso grupo Naború vagou solitário por extensos pagos na busca por algo que não tinha certeza. Impelido por um sentimento nômade de inconformidade percorreu imensas distâncias. Sempre em direção ao sul, atravessou as mais diversas paisagens. Enfrentou o frio de planaltos íngremes e infinitos, desceu rios imensos em direção a florestas úmidas, tão densas que o sol não tocava o chão. Atravessou desertos de sal e calor, extensos banhados repletos de aves de todas as cores e repteis traiçoeiros, mas nunca sentiu-se com vontade de parar.
Tanto vagou na direção meridional que a paisagem tornou-se branca, grandes geleiras passaram a habitar sua vista e por lá ficaram tanto tempo que se esqueceu de como era o horizonte sem elas. Vagou por semanas naquele ambiente diáfano. Até que um dia, faminto e exausto de tanta alvura, voltou-se para suas próprias pegadas, lembrou-se que não via nenhum outro rastro há muitos dias e retomou sua jornada sobre seus próprios passos. A volta foi muito mais difícil, por mais adaptável que fosse passou dias sem conseguir encontrar alimento em meio as constantes tempestades glaciais.
Com o passar dos dias a paisagem gradualmente ganhava novas cores e sua esperança de sobreviver aumentava, mas a exaustão era imensa. Morreria por pouco, pensou antes de recostar-se junto a um pequeno e solitário capão. Deitou sua cabeça sobre suas patas dianteiras e fechou os olhos para nunca mais os abrir. Porém seu olfato o salvou, um odor estranho cortou sua respiração numa brisa. Primeiro surgiu leve, quase indistinguível, em seguida veio tão forte que Naború levantou-se tencionando todo seu corpo. Um tropel acompanhado de guinchos aproximava-se rapidamente.
Assustado com tamanho alarido se manteve imóvel na mata, mas o som parecia cercá-lo. No instante seguinte um lobo bem menor que ele surgiu correndo por entre as árvores em sua direção, em seu encalço um grupo de javalis furiosos apareceu arrancando tudo a sua frente. Os javalis surgiram de todas as direções, Naború lutou para evitar suas presas afiadas e sem ter para onde fugir arreganhou seus dentes famintos e rosnou mais alto que os grunhidos horríveis das bestas.
Impelido pelo grupo um javali maior avançou enlouquecido contra Naború, o lobo esquivou-se da carga e antes que o javali pudesse se virar saltou sobre suas costas mordendo sua nuca. O couro do animal era espesso e parar sobre ele era uma tarefa impossível, mas a mandíbula de Naború era grande e todas suas forças estavam depositadas ali. Outros animais avançaram sobre ele enquanto o javali se contorcia e sacudia o lobo de um lado para o outro. Mas aos poucos a vida do javali se esvaiu e restaram apenas Naború, suas presas arreganhadas e um rosnado pavoroso.
Os outros javalis recuaram e desistiram do ataque, aos poucos seus ruídos foram perdendo-se na paisagem. Ainda arfando e rosnando, Naború foi aos poucos reduzindo sua tensão antes de mergulhar seu fuço no ventre do animal ensanguentado a sua frente. Enquanto se alimentava exausto lembrou-se da presença do outro lobo, levantou os olhos e divisou sua silhueta nas árvores próximas. Era um lobo bem menor que ele, mas estava cansado demais para poder brigar pelo javali. Deu mais duas grandes bocadas, recuou alguns passos e desabou no chão. Antes de perder a consciência, porém, percebeu a aproximação de diversos outros lobos...

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