segunda-feira, 4 de março de 2024

À deriva - 1

 Há poucas coisas mais desesperadoras do que ver sumir o último resquício de terra na linha do horizonte. A partir daí tudo vira mar e céu. Um medo primordial, daqueles que vem lá do fundo do peito, toma conta da gente. 

Quando se tem um meio de propulsão e um assoalho aos seus pés, esse medo é controlável. Dá para apelar à razão e se concentrar em outras coisas enquanto dissimulamos estar no controle da situação. Agora, quando estamos à deriva sobre um pedaço de poliuretano, sendo arrastados para longe da costa, é impossível negar o medo.

Era ele que me impulsionava, minutos atrás, a remar desesperadamente contra a corrente. É ele que se senta sobre meus ombros agora, paralisando meu corpo e meus pensamentos, na ideia fixa de que a morte é inevitável. 

Enquanto sou arrastado mar adentro, respiro com dificuldade, oscilando entre a esperança remota de ser encontrado por alguma embarcação e a certeza de morrer desidratado ou de hipotermia.  A ideia estúpida de largar a prancha e nadar para a praia ficou para trás há algum tempo, mesmo assim ela ronda minha mente como uma mosca insistente. 

Não há nada a ser feito. Digo para mim mesmo enquanto me resigno a manter o máximo possível o corpo para fora da água. Preciso preservar o calor do corpo e a sanidade.

A tarde estava quente para um dia de outono, convidativa para um banho no pelo. Assim que o sol for embora, porém, isso aqui vai virar um gelo. Por sorte estou de roupa de borracha. Odeio passar frio.

A ideia do anoitecer no meio do mar me aterroriza novamente. Recomeço a remar, forçando os braços adormecidos ao movimento repetitivo. A dor cresce, o ímpeto diminui, e ausência de qualquer referência, além do sol caindo, é desesperadora. 

Sento-me novamente na prancha e choro. Choro por mim, por um apego narcísico à vida, que gradualmente vai se transformando em um choro de tristeza. Penso na minha filha, em tudo que perdi, não disse ou não fiz, e choro em meio à corrente que me leva para longe de tudo.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Registro

 A vida é cheia de primeiras vezes. Primeiro beijo, primeiros passos, primeiros cabelos brancos... Algumas passam batido, não deixam marcas nem memórias. Outras perduram e ganham novas camadas a cada remorada. Há também aquelas que se descolam tanto do ocorrido, que se tornam lembranças inventadas, fábulas biográficas.

Dificilmente, porém, alguém se recorda do primeiro joelho ralado. Um evento extremamente importante, um dos primeiros contatos não mediados com a dura realidade, que ocorre cedo demais para a memória. Por isso faço o registro.

Foi na manhã de 04 de janeiro de 2023. Uma manhã ordinária de um ano que prometia ser auspicioso. Uma brisa de esperança e novos tempos soprava no calor escaldante de Porto Alegre. Dois moradores de rua arrastavam um tanque de aço enferrujado com enorme dificuldade pela calçada. O sinal abria e fechava enquanto confabulávamos sobre as cores e o momento certo para atravessar a rua: “Dá para passar?”, “Ficou verde?”. Tudo era absorvido e devolvido na forma de uma sincera interrogação.

Agora dá, vamos para a escola! A resolução apressada e os passos trôpegos logo nos lembraram que ainda havia muito a aprender. Mas a queda faz parte do aprendizado. E o choro que se seguiu também.

Tudo bem, meu filho (dois joelhos ralados de uma só vez). 

O colo ajuda a nos recompor do baque. A dor vai passar. Vamos limpar esse sangue e poeira e vamos contar para todos o ocorrido. Ficam as marcas da aventura e, agora, o registro da tua bravura.


quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Contratempo

Bicicleta, balão, pena

Piscina, cavalo de pau, carrinho

O tempo voa nas importâncias de criança

Ontem era chocalho e berço

Hoje já não cabe mais

Tem dia que dura uma eternidade

Mas depois dá uma saudade...

Quero tantas coisas com ele

Que às vezes me esqueço das de agora

Preciso prestar mais atenção no guri

Pra não perder nada pelo caminho

Vai sem pressa, filhotinho

Guarda o tempo na tua caixa de brinquedos

E só pega ele pra correr devagarinho.


quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Fim de Curso

 Acabou! A última aula se foi, a tensão se dissipou e a guarda baixou. No fim das contas, foi bem mais agradável do que eu pensei. Aprendi bastante e voltei a ensinar. 

Graças a ela, tudo se passou com mais naturalidade e leveza. Sua sagacidade deixou os encontros mais fluídos, trouxe mais dinâmica e encanto para as aulas. Sorrimos satisfeitos ao final, enquanto os últimos estudantes abandonam a sessão virtual. Nossa imagem reproduzida na tela estampa essa satisfação e um pouco do cansaço da jornada. 

Ela vira para mim e agradece por tudo. Diz que foi excelente trabalhar comigo e elogia minha postura. Agradeço e devolvo na mesma moeda. Seus olhos brilham. Tem algo a mais ali. 

Ela levanta e caminha em direção a copa, completa a garrafa de água enquanto eu sigo seu rastro, sem saber muito bem porquê. Paro sob o marco da porta, obstruindo sua saída. Sem conseguir articular nada melhor exclamo, meio sem jeito: “Acabou, então!”.

 “Acabou.”. Ela sorri e se aproxima. 

A tensão aumenta de forma inexplicável. Algo me impele em sua direção. Abro os braços num abraço não planejado. 

Ela corresponde e nos estreitamos um no outro.

quinta-feira, 19 de março de 2020

Carta ao Filho


Está feito, tomamos a decisão sem te consultar ou te perguntar. Eu pediria desculpas, mas não há outra forma de fazer isso e provavelmente voltaremos a tomar decisões ao teu respeito sem te consultar muitas outras vezes. De qualquer forma, agora não há mais volta, estás fadado a viver.

Não vou te mentir, as expectativas são altas e o desafio é grande. Vens a um mundo em permanente crise e ameaçado pelos mais terríveis prognósticos. Apesar disso, acredito que tenhas tido sorte, tua mãe é o ser mais amoroso e capaz que conheci em todos esses anos. Vais aprender com o tempo que ela está sempre preparada para tudo e nunca vai te deixar faltar nada. Já te aviso, em 99% das ocasiões ela está certa e não adianta teimar, só piora a situação.

Da minha parte também espero corresponder às expectativas. Tive alguns bons exemplos paternos e pretendo usá-los como referência. Sei que nem tudo ocorre como esperamos e que cada história é uma história, mas acredito em algumas pequenas coisas essenciais que herdei ou aprendi com esses exemplos. Nada muito elaborado, coisas básicas mesmo, que nem sei muito bem como traduzir em palavras, tão perto estão dos afetos. Estão mais pra atitudes, comportamentos que carregam consigo ensinamentos cotidianos.

Demorei um pouco pra elaborar isso e provavelmente vou aprender muito mais na prática, mas acredito no pescar do teu bisavô, de olhar tranquilo e fazer meticuloso; nas torradas ligeiras do teu avô, repletas de energia, salame, queijo colonial, tomates e o que mais tiver na geladeira; e na providência austera do meu padrasto, permeada por um emaranhado de cobranças e estimas. Não sei bem como equacionar esses elementos, nem se isso é possível, mas acredito na importância deles para a minha formação.

Acredito no saber, na curiosidade e na contemplação de coisas simples como o amanhecer. E por isso sonho em poder te levar para o mar, sentir a areia úmida sob os pés e te ensinar as direções do vento. Acredito no engenho e na indústria, no fazer pragmático das próprias mãos rudes. E por isso quero cortar grama contigo, construir e destruir coisas, limpar, plantar e colher, errar e fazer tudo outra vez até acertarmos. Acredito ainda no sustento, no senso de responsabilidade que tenho contigo e em todas as implicações vinculadas a essa relação. E com isso espero possibilitar as melhores condições para o teu crescimento e desenvolvimento.

Tudo isso são expectativas, sonhos que espero concretizar junto a tua mãe ao longo dos próximos anos. Sei que a paternidade vai muito além disso e envolve muitas coisas bem diferentes dessas, mas esta é uma carta para ti nesse momento incauto da gestação, um guia de intenções para a viagem e para me ajudar a organizar os sentimentos.

Não sabes, mas chorei de alegria quando ouvi teu coração de mar fluir pela primeira vez num refluxo contínuo. Foi a primeira vez que me dei conta do que estava realmente acontecendo. De lá para cá esse sentimento tem ido e voltado, crescendo e minguando conforme o dia e a situação. A distância não ajuda, é verdade, queria estar do lado de vocês o tempo todo, compartilhando cada novidade. São as contingências, meu filho, temos que apreender a lidar com elas desde muito cedo.

Mas estou fazendo força para voltar. Espero muito poder estar com vocês até maio.

Não corre, não, Dilan. Deixa o pai voltar. Sinto que já estou perdendo e não quero perder nada...

Com amor, Pai.

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Tormenta


Entre uma baforada e outra na varanda elas surgem, espremendo seus corpos cilíndricos contra a laje molhada da mureta elas sobem lutando para escapar da água que inunda a floreira. De certa forma é culpa minha que elas estejam nessa situação, eu que trouxe elas até ali na esperança de um convívio harmônico e produtivo.
Por isso recolho cada uma que aparece e deposito, o mais gentilmente possível, num pote improvisado com terra seca. Não é muito, eu sei, mas o que mais posso fazer? Na hora me vem a mente a imagem de grupos de refugiados que se jogam as águas do Mediterrâneo, sem garantia nenhuma de sucesso, impelidos unicamente por uma vontade de viver. Um paralelo horrível produzido pela minha mente anestesiada, mas que não deixa de guardar certa semelhança e inspirar alguma humildade.
Pois, no fim das contas, sejamos vermes anelídeos ou primatas superiores, estamos todos lutando pela nossa insensata sobrevivência. Movido por essa empatia separo o que sobrou de tabaco no apartamento, ¾ de uma garrafa de vinho tinto e me sento ao lado da mureta lavada pela chuva constante. Estou preparado para uma longa noite de resgate.

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Uma outra Clarice


Tia Maluca, ela se chamava assim de vez em quando depois de uma gargalhada gostosa meio descontrolada. Não sem algum fundamento, pois a tia Clarice era qualquer coisa, menos convencional. Aliás, suspeito que a tia não se dava bem com nenhuma convenção ordinária ou normalidade. Descendente direta de Cleópatra, discípula trans temporal de Van Gogh, pintava e moldava o mundo a partir de sua perspectiva inconforme. Não fazia muita questão de ajustar-se a ele, presava por seus amigos queridos, familiares confidentes, hábitos sagrados (café e cigarro) e levava o resto ao seu modo. Um modo todo dela, que desde muito cedo testemunhei, mas que custei a entender.
De fato, foi preciso que eu me afastasse dessa experiência, estudasse e debatesse propostas revolucionárias de sociedades que só existem em teoria, para compreender o que a tia Clarice e o Lauci já me ensinavam há anos na prática: amor, tolerância e diversidade. Mais que definir e defender valores a partir de bases teóricas, a tia, junto do seu inseparável companheiro, vivenciava-os. Tendo o afeto como principal força motriz, eles formaram as mais heterodoxas e interessantes famílias que tive o prazer de conhecer.
E seguem formando, segurando as pontas nos momentos mais difíceis e oferecendo abrigo nas tempestades, de quebra ainda tensionam convenções e afrontam bons costumes. Só que a Tia Maluca não pinta mais por aqui, deixou seu legado de quadros e mulheres em perfil espalhados pelo mundo. Olhando meio de lado, como num convite para um café e um cigarro àqueles que não temem o extraordinário.