quinta-feira, 19 de março de 2020

Carta ao Filho


Está feito, tomamos a decisão sem te consultar ou te perguntar. Eu pediria desculpas, mas não há outra forma de fazer isso e provavelmente voltaremos a tomar decisões ao teu respeito sem te consultar muitas outras vezes. De qualquer forma, agora não há mais volta, estás fadado a viver.

Não vou te mentir, as expectativas são altas e o desafio é grande. Vens a um mundo em permanente crise e ameaçado pelos mais terríveis prognósticos. Apesar disso, acredito que tenhas tido sorte, tua mãe é o ser mais amoroso e capaz que conheci em todos esses anos. Vais aprender com o tempo que ela está sempre preparada para tudo e nunca vai te deixar faltar nada. Já te aviso, em 99% das ocasiões ela está certa e não adianta teimar, só piora a situação.

Da minha parte também espero corresponder às expectativas. Tive alguns bons exemplos paternos e pretendo usá-los como referência. Sei que nem tudo ocorre como esperamos e que cada história é uma história, mas acredito em algumas pequenas coisas essenciais que herdei ou aprendi com esses exemplos. Nada muito elaborado, coisas básicas mesmo, que nem sei muito bem como traduzir em palavras, tão perto estão dos afetos. Estão mais pra atitudes, comportamentos que carregam consigo ensinamentos cotidianos.

Demorei um pouco pra elaborar isso e provavelmente vou aprender muito mais na prática, mas acredito no pescar do teu bisavô, de olhar tranquilo e fazer meticuloso; nas torradas ligeiras do teu avô, repletas de energia, salame, queijo colonial, tomates e o que mais tiver na geladeira; e na providência austera do meu padrasto, permeada por um emaranhado de cobranças e estimas. Não sei bem como equacionar esses elementos, nem se isso é possível, mas acredito na importância deles para a minha formação.

Acredito no saber, na curiosidade e na contemplação de coisas simples como o amanhecer. E por isso sonho em poder te levar para o mar, sentir a areia úmida sob os pés e te ensinar as direções do vento. Acredito no engenho e na indústria, no fazer pragmático das próprias mãos rudes. E por isso quero cortar grama contigo, construir e destruir coisas, limpar, plantar e colher, errar e fazer tudo outra vez até acertarmos. Acredito ainda no sustento, no senso de responsabilidade que tenho contigo e em todas as implicações vinculadas a essa relação. E com isso espero possibilitar as melhores condições para o teu crescimento e desenvolvimento.

Tudo isso são expectativas, sonhos que espero concretizar junto a tua mãe ao longo dos próximos anos. Sei que a paternidade vai muito além disso e envolve muitas coisas bem diferentes dessas, mas esta é uma carta para ti nesse momento incauto da gestação, um guia de intenções para a viagem e para me ajudar a organizar os sentimentos.

Não sabes, mas chorei de alegria quando ouvi teu coração de mar fluir pela primeira vez num refluxo contínuo. Foi a primeira vez que me dei conta do que estava realmente acontecendo. De lá para cá esse sentimento tem ido e voltado, crescendo e minguando conforme o dia e a situação. A distância não ajuda, é verdade, queria estar do lado de vocês o tempo todo, compartilhando cada novidade. São as contingências, meu filho, temos que apreender a lidar com elas desde muito cedo.

Mas estou fazendo força para voltar. Espero muito poder estar com vocês até maio.

Não corre, não, Dilan. Deixa o pai voltar. Sinto que já estou perdendo e não quero perder nada...

Com amor, Pai.

Nenhum comentário:

Postar um comentário