“A coruja de Minerva só alça seu voo ao
cair da noite”. (Hegel, Filosofia do Direito).
É sob a vigília do crepúsculo que a vida
adquire novos significados. Os acontecimentos do dia, banais em sua
cotidianidade, revestem-se de intricados e insondáveis sentidos. Sob o peso do
silêncio noturno todo suspiro eleva-se a condição de desespero e cada tique do
relógio ressoa sem concorrência pelo espaço da cozinha. O copo d’água sobre a
mesa, o reflexo distante no vidro da janela, detalhes da mobília parcialmente
iluminados pela porta entreaberta do banheiro, tudo ganha contornos de
relevância e reflexão.
Sob a atmosfera da noite repensei minha
vida inúmeras vezes. Invariavelmente decidia-me pela mudança brusca e imediata. Abandonaria a
relojoaria na manhã seguinte, anunciaria a venda da loja e com dinheiro ganho
iniciaria um novo negócio. Porém, ao despertar a convicção gradualmente
dissolvia-se como os sonhos da noite anterior. Faltava-me a perspicácia e a
frieza da perspectiva noturna. Durante a claridade ofuscante do dia sentia-me
incapaz de largar a relojoaria herdada de meu pai, que por sua vez herdara do
meu avô.
Era um ponto conhecido na cidade,
tradicional, digno da mais ortodoxa confiança. Situava-se sob os arcos do
viaduto da Avenida Borges de Medeiros, sua mera localização inspirava
apreço, era uma pequena, mas respeitável, loja de conserto e venda de relógios. E apesar de experimentar um contínuo e abruto declínio dos rendimentos,
permanecia disponibilizando os mais precisos serviços de relojoaria que esta
secular tradição pode oferecer. Contudo a qualidade e a tradição dos serviços
não bastavam para manter as portas abertas. Com o advento dos celulares e das
máquinas digitais ninguém mais ligava para a precisão e o rigor dos minutos, os
relógios tornaram-se quase descartáveis.
Por uma fina ironia do destino o negócio,
que era baseado no controle do tempo, transformou-se em uma loja anacrônica. Um
pedaço do passado incrustado no centro da cidade imediata. Meu principal
consolo era a loja de discos que se mantinha aberta alguns metros adiante do
meu estabelecimento. Às vezes, quando passava por lá em direção ao mercado,
detinha o passo e espichava o ouvido na espera de uma canção que me enviasse de
volta a uma época remota. Uma nostalgia sem fim tomava conta de mim e quase
chorava ao ouvir o lamento tornar-se distante e perder-se por entre motores e
murmúrios urbanos.
Mas esta era uma situação insustentável, qualquer
dia destes a resolução noturna haveria de prevalecer
diante dos fatos. Porém o peso dos anos exercia sua influência na balança das
decisões. Sob a claridade diurna o olhar austero da fotografia de meu avô era
imbatível, não havia argumentos que penetrassem seu cenho cerrado. Eu estava preso
em um impasse cronológico de difícil resolução.
Eis que uma noite, meio embriagado e
sonolento, uma coruja agourenta invade meu ordinário apartamento. Voa apavorada
em círculos pela sala, debatendo-se contra quadros, mobílias e cortinas. Quando
o turbilhão termina ela encontra-se pousada sobre um velho relógio de pêndulo
no centro da peça. Atirado ao chão, com as mãos sobre a cabeça, me volto
assustado para ave noturna. Sua cabeça vira noventa graus em minha
direção, seu olhar inquisidor me atravessa por alguns instantes e emitindo um som horroroso voa pela janela de volta para a noite.
Me recomponho e corro em direção a
persiana por onde o animal entrou, fecho-a com rapidez sem nem olhar para fora.
Paro um instante e percebo que meus batimentos estão acelerados, e entre as
batidas do meu coração ouço novamente aquele pio macabro. Estremeço
completamente e suspendo até mesmo minha respiração, aguço minha audição o
máximo possível e permaneço imóvel diante daquela tensão. Petrificado, captava apenas o som de minha aflição quando
o velho relógio soou meia noite em meio ao silêncio noturno.
Minhas pernas tremeram e quase desfaleci com as badalas.
Apoiei-me na parede próxima e percebi uma moldura quebrada no chão. Ainda
tremendo juntei o velho quadro já imaginando de qual fotografia
tratava-se. Era o retrato do meu avô, que outrora tão soturno, encontrava-se agora
desfigurado por um rasgo que lhe atravessava a face de ponta a ponta.
Mais tarde naquela noite a coruja voltou para atormentar
meus sonhos diversas vezes, sonhei com aves imensas, garras, pios e barulho de asas. Mas ao despertar na manhã seguinte senti que um
fardo enorme havia sido removido de minhas costas. Pela primeira vez parecia-me
que a decisão pertencia ao presente.


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