segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Céu em Chamas

Naquela noite sonhou caminhar por uma senda estreita, margeada por arbustos escuros e fileiras de velas fúnebres. Uma estranha procissão de um homem só, cujo destino final, de alguma forma sabia, era seu trabalho. Ao acordar sobressaltado olhou através da janela do ônibus e viu a escuridão noturna ser constantemente perturbada por distantes clarões irrompidos de dois flamejantes picos. Uma fumaça negra emanava do topo das grandes torres e misturava-se a densas nuvens no céu.
Logo percebeu que, diferente do seu sonho, não eram velas que iluminavam o caminho, mas imensas estruturas de aço projetadas pela mente humana para queimar todo o excedente de gás combustível em casos de emergências industriais. Um mau agouro pairava no horizonte, carregados pelos ventos, os rastros negros daquelas combustões uniam-se em direção a oeste formando um quadro apocalíptico perturbador. Tons que passavam por todo o espectro de cores incandescentes retocavam a sinistra obra.
Naquele instante, ao contemplar aquele cenário, uma aflição até então desconhecida assolou seu coração. O convívio com um grande perigo, sobcontrole e por um longo período de tempo, havia naturalizado as potencialidades envolvidas na sua atividade profissional. Porém ao ser confrontado assim, de forma tão repentina e intensa, por este inevitável risco, não pode deixar de hesitar por um momento.
Não era a primeira emergência de grande porte que enfrentava, já havia se deparado com situações similares ao longo de sua carreira industrial. Todavia, nunca um mau pressentimento tão intenso esteve presente assim em sua mente. Algo em seu âmago, além do pragmatismo habitual, informava-o do terrível risco da situação. Olhou ao seu redor, buscando em seus colegas de transporte algum conforto, mas logo percebeu que suas expressões não revelavam nenhuma segurança ou determinação, todos pareciam aflitos em suas reflexões pessoais.
Pensou na sua pequena filha, na beleza e ternura de cada traço seu, pensou em como seria triste nunca mais ver seu sorriso e em quanto ela sentiria sua falta nos momentos importantes de sua vida caso nunca mais retornasse para a casa. Lembrou-se de sua mulher e desejou intensamente estreitá-la em seus braços uma vez mais antes de encarar o destino que o aguardava. Desolado, soltou um longo suspiro e voltou-se novamente para as chamas que ardiam no céu amaldiçoando sua profissão e tudo nela envolvido.
Aproximava-se da indústria enquanto os clarões intensificavam-se. Agora já podia sentir o calor da radiação sobre seu rosto. Não havia muito a fazer, todas as escolhas importantes já haviam sido tomadas algum tempo. O trem do destino havia partido e tudo convergia para este momento. De nada adiantaria culpar-se pelas escolhas passadas, restava-lhe apenas buscar forças em algum sentimento capaz de mobilizá-lo. Foi quando o ônibus que o transportava deteve-se antes de adentrar na portaria da planta industrial.
A porta do veículo se abriu e um colega combatente do incêndio entrou coberto de fuligem, passou algumas instruções e informações sobre a emergência aos passageiros e agradeceu imensamente a presença de todos. Era o estímulo que precisava. Uma dose cavalar de adrenalina, somada a um sentimento de empatia por aqueles que lá estavam, despertou nele um senso de dever que superou todos seus receios. E aparentemente todos seus colegas foram tomados pela mesma motivação, pois pareciam agora despertos e totalmente focados em suas futuras ações.
Durante o longo embate contra a provável catástrofe voltou a hesitar apenas uma última vez. Antes de vestir sua roupa de combate ao fogo encarou a longa labareda que se desprendia dos equipamentos em chamas, em direção ao céu coberto de vapores, parou por um instante e pensou mais uma vez com carinho na sua família.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Viajantes na Tempestade


Existem episódios extremamente marcantes ao longo de nossas vidas, raros momentos que, por razões completamente desconhecidas para nós, inscrevem-se em nossas memórias para sempre. Assim ocorre com algumas músicas quando as escutamos pela primeira vez, causam uma impressão tão forte que são capazes reverberar aquele instante para o resto de nossas vidas. E assim foi com Riders on the Storm do Doors para mim. Lembro até hoje, em detalhes, a situação e a sensação quando tive o primeiro contato com aquele inebriante som.
Não sabia quase nada sobre Doors ou Jim Morison, muito menos sobre o Huxley ou experiências com ácido. Porém aquele ruído de chuva e trovões, acompanhado daquelas distantes notas de teclado, soaram para mim como um mundo inteiramente novo. Apesar de vago, o conjunto da música me sugeria um sentido quase tangível. Eu facilmente conseguia imaginar uma cena para aqueles sons: um homem solitário caminhando sob a tempestade a beira de uma estrada deserta. Mais que isto. Eu conseguia imaginar a chuva e o assassino do lado de fora da minha janela.
Era exatamente aquilo que eu e meus amigos queríamos fazer na época, algo que sugerisse universos distintos e palpáveis, oníricos, mas verossímeis. Ainda não sabíamos por que meios iríamos realizá-lo, mas com certeza este era o efeito desejado. A empolgação era imensa, uma corrente incessante de ideias jorrava de nossas mentes para nossas bocas numa velocidade que tornava as primeiras esquecidas no instante seguinte. Ninguém tinha nenhum plano de como colocá-las em prática, o mais importante era como viver aquelas ideias.
Emulados por estes sentimentos, partimos embriagados em direção a toda sorte de aventuras e empreitadas que pudessem culminar em uma experiência autêntica. Escrevemos roteiros, músicas e contos; pegamos carona, experimentamos drogas e acampamos em terrenos baldios; buscamos nas mais diversas fontes inspiração para nossas angústias e desejos de expressão. Porém, apesar de todos os esforços, aquele deslumbramento inicial parece nunca ter sido alcançado novamente.
Pelo contrário, as sensações pareciam esmaecer cada vez mais em relação às experiências anteriores. Como num processo de gradual desencantamento da realidade, passamos a ajustar nossas expectativas às possibilidades mais concretas. Reduzindo nossas ambições ao plausível, e desejos ao provável. Amadurecemos a duras penas, acumulando instrutivas derrotas, mas que deixavam um gosto amargo na boca. Alguns desistiram antes mesmo de tentar, outros, merecedores de toda minha admiração, seguem lutando.
Hoje, quando reflito sobre o mundo de possibilidades que havia na época, um sentimento lúgubre invade minha alma. Porém quando recordo as dantescas tentativas e os mirabolantes projetos, contrastados pelos minúsculos recursos, uma saudosa vontade de tentar novamente parece-me inspirar. Ainda que por um breve momento, reúno forças para debelar a inércia e superar o marasmo. Um lampejo de criatividade parece surgir em meio a uma imensa e escura nuvem de burocracia.
Às vezes trata-se de um mero estalo, sem forças suficientes para desencadear algo maior que uma iluminação parcial da situação. Mas por outras possui a intensidade necessária para me levar de volta para aquele quarto, ao som daquele gotejar constante, marcado pelo ribombar dos relâmpagos, quando tudo ainda era possível e a imaginação não tinha limites.


segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Lobos que Pescam


Há muito tempo, quando eu habitava a casa de meu avô durante longas temporadas de verão, costumava acompanhá-lo em suas frequentes incursões à pesca. Todas as manhãs ele acordava bem cedo, levantava-se em silêncio e preparava suas linhas e anzóis com calma e precisão. O sol ainda dormia no mar quando ele se aproximava da minha cama e gentilmente sacudia-me pelos ombros.
A temperatura do ambiente costumava atingir seu ponto mais baixo neste horário, uma brisa leve geralmente soprava entre as frestas das janelas e por baixo das portas, trazendo o frio da noite para dentro da casa. Após levantar eu atravessava a cozinha onde um grande relógio de parede, feito de placas de metal e números romanos, marcava aproximadamente a mesma hora todos os dias. Na época eu era incapaz de compreender esta precisão do meu avô, como ele conseguia acordar por conta todas as manhãs no mesmo horário? Que motivações eram estas que o tiravam das cobertas quentes todos os dias por iniciativa própria?
Sem respostas e ainda meio sonolento auxiliava-o no carregamento dos equipamentos em direção à praia. Marchávamos em silêncio, contemplando aquele fugaz período de transição entre a noite e o dia. Recordo aquele semblante calmo e austero mirando a linha do horizonte como quem prospecta o universo, desvendando todos seus segredos com uma simples fungada. No instante seguinte ele decidia a direção e a posição em que nos instalaríamos ao longo da costa. Atitudes como esta tornavam ainda mais obscuras para mim as determinações da pesca.
Durante a maioria das vezes limitava-me a observá-lo em ação, seus modos tranquilos dominavam aquela arte como se a praticasse desde todo o sempre. Certa vez ensinou-me como catar iscas para o anzol, com paciência e tranquilidade explicou-me sobre as tatuíras boas e ruins para iscar e sobre como e onde cavar para encontrar os melhores mariscos. Aos meus olhos infantes toda aquela sabedoria e afeto, transmitidos através daquelas preciosas lições, transformavam-no em um ser incrivelmente superior aos demais. Um gigante de conhecimento e sabedoria, capaz de sorver o mundo todo aos poucos, sem pressa ou solavancos.
Muitos verões se passaram desde que meu avô se foi. Contudo, após alguns anos voltei a ser sacudido pelos ombros cedo pela manhã. Seus gestos não eram propriamente silenciosos, pelo contrário, costumava ser expansivo e brusco em seus movimentos. Agia com ímpeto e determinação, eu costumava pular assustado da cama devido à tamanha energia. Porém ao cruzar a cozinha, o velho relógio romano seguia marcando invariavelmente a mesma hora.
Passei a pensar que meu pai herdara do meu avô esta habilidade de despertar sempre cedo no mesmo horário, entretanto por alguma falha na cadeia genética esta propriedade havia sido excluída da minha constituição. Em geral seguíamos o mesmo roteiro acompanhado pelos mesmos procedimentos, porém sua personalidade transformava completamente a experiência. Seu constante sorriso e sua humanidade transbordante contrastavam com o silêncio contemplativo do seu progenitor.
Falava e fazia com motivação, conversava e contava piadas enquanto, simultaneamente, iscava, cavava e lançava a chumbada em direção ao mar. Cumprimentava os raros passantes com entusiasmo, trocava palavras com desconhecidos como se velhos amigos fossem. Era impossível manter-se indiferente a ele. Num dia qualquer, com uma faca de serra em mãos, decidiu ensinar-me como limpar os desafortunados peixes. Com um só talho passou a decapitar os inertes animais. Em seguida retirava com movimentos rápidos e bruscos suas barbatanas, nadadeiras e escamas, por fim abria um rasgo no ventre do peixe e estripava-o com um movimento do polegar. Tudo isto acompanhado de muita naturalidade e um largo sorriso nos lábios.
Nunca passei desta parte, meus ensinamentos foram interrompidos por outros interesses. Mas quando me lembro desta tradição familiar, recordo-me com carinho das silenciosas lições de meu avô. Sua postura moral inalcançável serviu-me como norte, como um ideal a ser seguido por toda a vida. Assim como as espontâneas instruções do meu pai, capazes de aproximar e humanizar a realidade a um nível mais adequado de ser vivido. Ambos complementavam-se na minha mente.
 Um dia destes, mais próximo do presente, uma inquietação pareceu me assombrar durante o sono, um cheiro de terra e um assovio do vento me despertaram de tal forma que foi impossível retornar aos sonhos. Virei na cama durante um tempo antes de decidir levantar. Já sem nenhum resquício de sono olhei o relógio que marcava cinco e trinta da manhã e saltei para fora das cobertas. Como se impelido por uma força maior saí para a rua e caminhei lentamente em direção à praia. 
De frente para o impassível oceano, parei por um momento tentando compreender o significado daquilo tudo. A areia úmida sob meus pés, o cheiro salgado do ar e a visão daquele vasto horizonte àquela hora da manhã, provocaram em mim uma estranha satisfação. Algo muito além da razão me informava que ali era o meu lugar naquele momento. Motivado por estas confusas sensações refleti por um breve instante sobre a situação, e após alguns segundos de contida introspecção percebi o óbvio: eu precisava dar continuidade aquele legado.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Pergaminhos do Barqueiro


Não sei como vocês imaginam o pós-morte, mas acreditem-me, não há nada de harpas, nuvens ou querubins pelados. Existe apenas o frio, um frio lancinante que atravessa nossas almas, desmanchando-as pedaço por pedaço interminavelmente. Isto e um imenso vazio que nos aflige com a mais desprezível indiferença, reduzindo-nos a sombras errantes de mudo desespero.
Vagamos por infinitos de desinteresse e silêncio, ruminando lembranças passadas como gado num triste descampado. Não há interação entre nós, creio até mesmo que muitos não sejam apenas indiferentes em relação a tudo, mas cegos para qualquer coisa além de si. O que torna ainda mais irônico o fato de passarmos grande parte da vida preocupados com nós mesmos, uma vez que no fim teremos como única companhia nosso próprio egoísmo.
Por vezes nutria uma débil esperança de que isto fosse o purgatório, que em algum lugar neste vasto desterro encontraria a montanha espiralada onde são purificadas as almas de seus pecados em vida. Nestes momentos ansiava não tanto pelo arrependimento que levaria ao paraíso, mas sim por alguma forma de transição deste lugar. Porém percebi que a expectativa não passava de uma ilusão, uma ferramenta para lidar com a nossa incapacidade de encarar a eternidade. Somos limitados em nossa natureza finita, mancos cognitivos impossibilitados de conceber o real sentido da atemporalidade. Constatação que tornou o meu desespero ainda mais presente, reduzindo minha indiferença.
Foi o que o viabilizou este mínimo lapso de motivação, fagulha que brilhou fracamente em meu peito, incitando-me a uma atitude. Dominando como pude a apatia que imperava percorri as mais distantes sendas, e entre campos estéreis e rochedos áridos me perdi inúmeras vezes sem saber o que buscava ou que resolução me colocara naquela direção. A paisagem tornou-se cada vez mais inóspita e desoladora, já não encontrava alma alguma em meu caminho.
Cruzei vales e penhascos onde nuvens carregadas de fúria pareciam rugir contra mim. Labaredas de fogo vibravam nas entranhas daquela massa cinzenta disforme. Um espetáculo realmente aterrador caso houvesse algo a ser temido, pois o meu receio maior era o vazio, era o retorno aquele contido desespero. Ao fim da vasta tempestade encontrei-me no interior de uma várzea inundada, um pântano sombrio e pestilento, banhado pelo manancial que tanto procurava.
Segui o curso d’água até tornar-se um caudaloso rio, suas margens expandiram-se para além do alcance da vista, sua cor tornou-se turva e sua água, densa como mercúrio, adquiriu uma placidez mórbida. Numa enseada grande como uma baía divisei à distância a figura de um barqueiro, pareceu-me encurvado pelo peso dos milênios e magro como uma ossada. Era Caronte, o barqueiro de almas. 
Ao me aproximar suas órbitas vazias me contemplaram, num segundo percorreu o vazio da minha alma e descobriu minhas intenções. No mesmo instante informou-me suas condições: levaria esta minha mensagem escrita num pergaminho contanto que eu guiasse a barca no seu retorno a margem. Logo percebi o que estava em jogo nesta negociação, porém não tinha meios para a barganha.
Redijo esta carta na murada da barca, numa ínfima tentativa de alertá-los quanto à efemeridade da vida. Sei que conselhos partem das fontes mais hipócritas possíveis, e desta vez não é diferente. Mas permitam-me fazê-lo - não fundamentem suas vidas em medos e credos absurdos, sustentados por quem nada sabe além do próprio dogma, porém, não a torne demasiada frívola ou egocêntrica, pois não há uma segunda chance. Não sei ao certo qual será o destino destas palavras, afinal ainda temos Cérbero pela frente, entretanto o meu, está traçado pelo resto da eternidade.  

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Sobre a Árdua Tarefa de Fazê-la Sorrir


Josias o sabia desde o princípio. Logo, não se tratava de uma mudança repentina que bruscamente ocorrera em suas vidas, mas sim de um gradual agravamento de uma condição pretérita. De fato, quando a conheceu, uma das primeiras coisas que lhe chamou a atenção foram sua seriedade e introspecção. Contudo, não estranhou muito, afinal, o que mais se deveria esperar de uma bibliotecária?
Neste período, Josias terminava o doutorado e sofria na tentativa de organizar suas referências bibliográficas. Por este motivo, ou por qualquer outra providência desconhecida  do destino,   encontravam-se com uma certa frequência, mas até então nada mais despertara seu interesse por aquela garota sisuda de aparência regular. Até o dia em que soltou junto a ela um gracejo involuntário sobre sua inaptidão para organização. Um sorriso tímido, mas sincero brotou nos lábios da moça. Foi como o brilho do sol que irrompe lentamente através de densas nuvens de um dia nublado, antes de morrer no horizonte durante o fim da tarde.
E como tal, não passou de um breve momento que antecede o anoitecer. Mas bastou para Josias perder-se. Aquele istimo de sorriso, cercado por um oceano de seriedade, foi a coisa mais bela por ele já vista. Não possuia palavras para descrevê-lo, tamanha sua estupefação diante daquele fenômeno que ficou sem saber ao certo quanto tempo ficou parado sozinho diante do balcão da biblioteca. Estava perdidamente encantado por aquele sorriso involuntário de beleza incomensurável.
A partir daquele dia as preocupações com o doutorado passaram para o segundo plano, Josias passou a despender todos os seus esforços em tentativas de conhecê-la melhor e convidá-la para sair. Por fim, após alguns fracassos, obteve sucesso em sua apaixonada empreitada. Daí para o namoro foi um pulo. Seguiram-se os procedimentos habituais, acompanhados dos sentimentos e expectativas naturais a estes contextos.
Porém não tardou a Josias perceber que o sorriso, fonte de tão profunda admiração, não era algo fácil de ser revelado. Aliás, já no primeiro encontro ele percebeu que tal como um fenômeno natural de rara beleza, aquele sorriso não ocorria de forma gratuita ou premeditada. Era um acontecimento espontâneo e imprevisível, porém incrivelmente belo em sua harmonia e simplicidade.
Com o passar do tempo, entretanto, o brilho daquele sorriso tornou-se cada vez mais escasso. Josias passou a contar nos dedos das mãos o número de vezes em que ela sorria durante o mês. Os dias transformaram-se, a morna monotonia dos tons de cinza passou a predominar. Porém quando eventualmente sorria tudo se iluminava novamente e cobria-se de brilho e cores, que até então permaneciam obscurecidas pela penumbra de um cenho fechado.
Preso entre esparsos momentos de pleno regozijo e intermináveis períodos marasmo, Josias aguardava, torcia e sofria. Zelava aqueles lábios ansiosamente na expectativa de entrever por um mísero momento a beleza daquela manifestação da mais terna alegria. Contudo, esta interminável espera desgastava-o, já não passava mais de uma sombra do que fora outrora, andava ainda mais magro e debilitado do que os longos períodos de leituras o haviam transformado.
Certo dia, após ser confrontado por um amigo de longa data sobre sua sofrível compleição, relatou entre copos de cerveja sua história e dilema em pormenores. O velho amigo concordou plenamente em relação à beleza do sorriso da companheira de Josias, porém, embora não os visitasse mais com a mesma frequência de antigamente, discordava sobre a escassez do fenômeno, recordava-se da espontaneidade e de uma agradável frequência, principalmente quando juntos o casal.
Um tanto quanto contrariado, Josias despediu-se do amigo e se pôs a caminhar, uma chuva fina caía interminavelmente do céu. Talvez o amigo não os visse há muito tempo e suas impressões pertencessem a um passado distante, mas não era esta a realidade, visitavam-se ainda. Refletiu intensamente sobre aquele sorriso mágico, refazendo mentalmente seu cotidiano nos últimos dias. Lembrava-se dele com extremo carinho diariamente, então, por um iluminado momento pareceu-lhe que o via todos os dias, porém não o percebia como antigamente.
Atônito, Josias parou na calçada molhada. A chuva, que arrastava-se longamente fazia três dias, cessou. Com os pés molhados até as meias, Josias alçou o olhar o mais longe possível em direção ao oeste, e por entre nuvens que pareciam evaporar-se lentamente, vislumbrou um fino feixe de luz que ia expandindo-se de forma progressiva. Um sorriso espontâneo, quase imperceptível, desprendeu-se de seus débeis lábios. 
                   

quinta-feira, 5 de julho de 2012

A Passagem


Alguém uma vez me disse que o tempo era relativo. Na época, apoiado nos meus parcos conhecimentos de física, percebi que algo me escapava na sentença, era incapaz de compreender seu verdadeiro sentido. Ontem, de forma muita abrupta e aguda, a compreendi em sua totalidade. Singrava velozmente de magrela pelas ruas atulhadas da cidade, como de costume, pedalava entre os carros atrasado para o trabalho.
Há alguns meses atrás adotei este meio de transporte intraurbano, além de saudável e menos estressante me agradou muito a ideia de observar a cidade nesta velocidade. As pessoas ganham mais contornos e profundidade, os prédios e árvores revelam detalhes impossíveis de serem percebidos de carro ou ônibus, o borrão dos vultos se vai e tudo se passa como uma película de super 8, levemente acelerada pelos frames em sequência. Sem falar na vantagem de ainda assim estar em movimento rápido de passagem, cruzando rostos e carros sem se preocupar com qualquer julgamento externo. Praticamente alheio a todo aquele caos urbano.
Naquela manhã era precisamente isto que eu fazia, atrevessava velozmente um congestionamento enquanto observava as pessoas que ficavam para trás. Quando num grande cruzamento, trancado pelo excesso de veículos, fui repentinamente arremessado ao ar por um carro que trocou subitamente de pista ao arrancar em alta velocidade. Não vi nem a cor do maldito. No momento do impacto prestava atenção nas pessoas que atrevessavam na minha adjacência a faixa de pedestres perpendicular a via.
Porém, aquele instante fugaz, precedido pelo baque surdo de minha bicicleta contra a lataria do carro, durou uma eternidade. Lembro dos semblantes sisudos que atravessavam a rua, desfigurando-se lentamente enquanto saiam do enquadramento. O azul claro e limpo do céu passou a predominar entre alguns galhos de árvores esparsos e manchas brancas disformes de nuvens que rodopiavam de forma vagarosa. O movimento gradual de ascensão era nitidamente percebido, primeiro pelo estômago que parecia acompanhar o movimento até a boca, muito depois pela suspensão total do peso do corpo. Uma agradável sensação de flutuação, só interrompida pela percepção da iminente queda.
Imaginem a aflição de uma mente que se percebe em um inevitável acidente, mais ainda, acompanhada por um terrível e agonizante sentimento de impotência frente à sucessão de lentos acontecimentos que se desdobram diante de si.  Tive tempo suficiente para refazer e amaldiçoar cada segundo do meu dia antes do acidente. Dizem que toda sua vida passa diante dos seus olhos em momentos com este, no meu caso foram as vidas dos outros que se sucederam em sequência enquanto voava pelos ares.
Conforme caia lentamente, provocando a retração do então expandido sistema digestivo, os rostos dos transeuntes voltavam a figurar em cena. E para cada um que se fixava um fenômeno estranho ocorria, o olhar dilatava-se e perdia-se em histórias de vida. Um a um todos reveleram, numa torrente incessante de imagens que fluiam na minha direção, suas trajetórias, medos, anseios e desejos. Ao cabo de infinitas horas de histórias, sentia-me inundado de tanta vida que a minha própria perdeu em parte sua relevância.
Fui intensamente atingido por toda aquela vida em abundância, juro que percebi o momento piegas em que uma magra lágrima brotou em meu olho. Todos aqueles dramas, comédias e tragédias levaram-me a um breve e pleno momento de comunhão com a humanidade. Era tudo tão sereno. Recordo que cheguei a me perguntar se afinal não seria aquilo a morte, mas fui rapidamente contrariado pela dura realidade.
O brusco estrondo do ruído da cidade, ampliado em um volume absurdo, acompanhado do doloroso impacto contra o asfalto da rua, aceleraram novamente a sequência de eventos. Como em fast forward vi rostos desconhecidos ao meu redor, o azul do céu borrado pelo movimento, um teto branco, pessoas de uniforme, mais teto branco e a total escuridão. Acordei num leito de hospital, com uma porção de tubos enfiados e sem poder me mexer sem dor.
Estava todo escalavrado, doíam-me até os pensamentos. Fui recordando lentamente os acontecimentos pretéritos, não havia ninguém no quarto. Vi a campainha para acionar a enfermeira sobre a mesa ao meu lado, mas não tive a menor vontade de chamá-la. Permaneci aquela madrugada insone, lembrando as histórias das pessoas que fluíram até mim, nunca mais estaria sozinho. Esta noite durou outra eternidade.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Obsessões


Não há nada mais pavoroso na experiência do que a tomada de consciência de uma obsessão, somente quem já vivenciou tal sensação é capaz de compreender o horror de uma ideia ganhando sua mente pouco a pouco por completo. No princípio sempre surge como algo remoto e incipiente, uma bobagem ocorrida a esmo por uma casualidade qualquer. Até graça achamos de cogitarmos uma possibilidade tão distante. Mas o aumento da frequência traz o assombro, que nos leva a pensarmos ainda mais no caso. E quando finalmente percebemos algo de errado, o círculo vicioso da obsessão já se encontra fechado.
Cada passo dado na direção contrária retorna inevitavelmente ao ponto de origem, todo esforço realizado intencionalmente visando um objetivo diferente reforça ainda mais o alvo da obsessão. Alguns me tomarão como louco após este relato, porém, alego para minha defesa que qualquer ser humano cuja vida foi obscurecida por uma imensa sombra, capaz de pairar sobre cada ato seu, teria agido de forma semelhante a minha.
Na época em questão trabalhava regularmente numa indústria de equipamentos mecânicos, um trabalho enfadonho, mal remunerado e extremamente tedioso, mas suficiente para pagar meu aluguel e minhas contas. As horas arrastavam-se lentamente naquela linha de produção ininterrupta, qualquer pretexto para se ausentar daquele ritmo contínuo e desgastante era válido, banheiro, doença, almoço, tudo. Porém eu era um dos mais assíduos trabalhadores da minha unidade. Embora odiasse aquilo, me permitia divagar quilômetros de distância enquanto me debruçava sobre a linha, perdia-me em pensamentos distantes, remontando filmes e relembrando livros há muito lidos, durante infindáveis horas.
Ao cabo de alguns meses de serviço fui chamado à secretaria, apenas se ia à secretaria por dois motivos, promoção ou demissão. Como era muito novo na empresa estava resignado e convicto de que se tratava do segundo caso, porém, para minha surpresa, havia sido promovido a supervisor da linha. Passei o restante do dia numa sala de treinamentos, recebendo instruções sobre a atividade e as responsabilidades de um supervisor de linha, meus honorários aumentariam também, mas nada significativo. A grande promoção estava no status e na relevância da função para a firma.
Tamanha era a importância do cargo que toda a segurança da linha encontrava-se sobre minha responsabilidade, a ênfase sobre este aspecto foi imensa. Entre outras atribuições menores, eu seria o encarregado de acionar o botão de parada imediata da linha em caso de emergência. Durante à tarde do treinamento fui brevemente apresentado ao dito botão de emergência, era um botão vermelho vivo, protegido por uma barreira de acrílico, identificado por grandes letras amarelas: “Parada de Emergência”. Foi neste dia que a obsessão teve inicio.
Como fazia parte da minha função, passei a observar o botão constantemente. No princípio com o intuito de não perdê-lo de vista em caso de uma eventual necessidade, depois comecei a questionar-me como seria esta parada, o que ocorreria com as máquinas, quais seriam as consequências da minha atitude.  Gradualmente a ideia de pressioná-lo foi ganhando cada vez mais espaço na minha mente, sabia que não deveria fazê-lo sem a estrita necessidade, porém algo extramente forte atraía meus pensamentos com uma intensidade sempre maior nesta direção.
Muito estranha é a mente humana, sem a menor justificativa racional é capaz aferrar-se a um pensamento fixo, sem que nada seja capaz de demovê-la. O maldito botão passou a preencher meus dias na empresa, até mesmo em casa a ideia me assombrava de maneira recorrente. Um dia, contudo, acordei resoluto, acionaria aquele botão sem me importar com as futuras consequências. Tratava-se de uma situação insustentável, minha capacidade de raciocinar encontrava-se extremamente debilitada e apenas a pressão de meus dedos contra aquela superfície vermelha seria capaz de aliviar-me.
As primeiras horas do turno foram horríveis, uma tensão imensa dominava meu corpo, lutava cada minuto contra minha própria resolução. Próximo ao meio dia estava exausto e combalido, derrotado, entreguei-me a uma espécie de transe. Caminhei lentamente em direção à botoeira, levantei sua transparente proteção de acrílico e hesitei por um breve momento. Súbito, um grito lancinante de dor ecoou por todo o pavilhão, era música para os meus malditos ouvidos, soltei um suspiro aliviado e pressionei bruscamente o botão. Um tremendo estrondo de metal rangendo e vapores sendo aliviados adveio como consequência, uma sombria orquestra para uma mente obsecada.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Caminhos Cruzados


Após uma semana perdendo sistematicamente meu ônibus, enfim consegui alçá-lo antes da torturosa arrancada. Se rico andasse de ônibus, sua partida seria o fenômeno mais democrático do país, pois não distingue nada de ninguém, é indiferente a todas as urgências e importâncias possíveis, deixando para trás todo tipo de rostos desolados ou incrédulos com seu azar. Pior ainda quando arriscamos uma corridinha esperançosa, crentes de que pelo menos desta vez conseguiremos, e somos confrontados com a triste traseira afastando-se numa velocidade quase irônica da parada. 
Já estava quase naturalizando a situação, corria sem a esperança. Porém, um conjunto de determinações universais inexplicáveis permitiu que naquele dia o motorista do ônibus aguardasse minha chegada antes de partir. Não procurei nem ao menos tentar buscar as explicações para ocorrido, talvez estivesse apenas com sorte. Incrédulo, passei a catraca e procurei por um assento, havia apenas um, ao lado de uma pequena senhora idosa. Assentei-me satisfeito, pensando que talvez, só talvez, aquele poderia ser meu dia de sorte.
Abri minha mochila na busca de um artigo científico que deveria ler para a aula da próxima semana, porém havia deixado-o em casa. Recorri então a um livro de literatura que levava para ocasiões como esta. Antes que pudesse iniciar a leitura a senhora ao meu lado pediu licença e solicitou a descida na próxima parada. Quando o ônibus arrancou novamente entrevi sobre as páginas do livro três pessoa na fila para passar a roleta, um cidadão maltrapilho, surrado e aparentemente podre de bêbado, um gordo imenso, cuja testa brilhava e apesar de clima outonal transpirava muito, e uma loira estonteante.
Como era o único assento disponível, calculei rapidamente a probabilidade de a moça loira sentar ao meu lado, minha conclusão prévia foi de que nem em mil corridas com estas mesmas condições isto ocorreria. Contudo tratava-se de um dia particular. E por motivações ainda mais inexplicáveis para mim, o pau d’água decidiu equilibrar-se corajosamente sobre seus próprios pés, o gordo parou próximo à porta, talvez aguardando para descer em breve, e a loira deslizou inacreditavelmente até junto a mim, pediu licença e sentou-se ao meu lado. Decididamente estava com sorte, era uma conclusão irrefutável diante dos fatos apresentados.
Sentia-me iluminado. Encorajado pela sequência de eventos recentes iniciei uma observação despretensiosa da moça com o canto dos olhos. De perto ela era ainda mais bonita do que aparentara, usava uma saia curta e uma meia calça escura e exalava um aroma levemente adocicado. Porém não conseguia visualizá-la em sua totalidade, apenas seu perfil esguio e sisudo me era acessível daquela posição. O livro aberto em minhas mãos já não fazia mais sentido algum, as palavras se embaralhavam naquele perfume e um mero descruzar de pernas me levou as alturas mais distantes. Só fui capaz de retornar ao ônibus quando ela virou-se em minha direção e inclinando-se levemente sobre o livro disse “Adoro Kafka”.
A sentença que flutuou de seus bem desenhados lábios até meus ouvidos incrédulos soou como um dialeto estrangeiro, num primeiro momento fui incapaz de articular tais palavras com o livro que estava em minhas mãos. Somente após o auxílio de seu olhar insistente para o livro compreendi do que tratava seu comentário. Devo ter parecido um tanto idiota, confesso, mas nada que não fosse remediado pela conversa sincera e espontânea que entabulamos na sequência da viagem.
Enquanto versávamos sobre os mais variados temas, não pude deixar de pensar sobre as condições pretéritas que possibilitaram aquela conversa. Ainda assim a companhia foi tão agradável, possuíamos tantos gostos e interesses em comum, que ao fim do meu trajeto peguei seu e-mail, com uma desculpa qualquer de passar a referência de um livro supostamente do seu interesse.
Porém, após descer do coletivo, enquanto caminhava chutando as pedras da rua, refleti profundamente sobre os detalhes da conversa e sobre o contexto da situação. Olhei bem para o pedaço de papel de caderno rasgado, onde estava anotado o e-mail, e soltei-o no ar. Uma brisa faceira levou-o aos rodopios para todas as direções, depois subiu ao céu e desapareceu da minha vista. Era muita sorte para um dia só.

sábado, 31 de março de 2012

Gaia


Mudanças nunca são fáceis para crianças. Seus infinitos universos de fantasia estão, na imensa maioria dos casos, presos a minúsculas particularidades da vida real. Cada pequena familiaridade do cotidiano representa uma estrutura fundamental para sua realidade. Por isso, mudanças de cidade nunca são fáceis para crianças. Imagine perder, de uma tacada só, grande parte de suas referências ordenadoras do mundo: casa, professores, amigos e vizinhos. Porém trata-se de um trauma recuperável, a maioria delas é capaz de conformar rapidamente seu universo mágico a nova realidade.
Algumas, no entanto, em geral as mais introvertidas e criativas, apresentam sérias dificuldades em se relacionar com a nova situação. Caso característico do pequeno João. Dono de grandes olhos tristes, João teve sérios problemas para desenvolver novas amizades após a mudança de sua família. Na maior parte do tempo que estava com seus pais mantinha-se alegre e bem disposto, porém qualquer menção sobre a escola ou a rua entristecia o pequeno João. Apreensivo por ver seu filho em semelhante estado, seu pai, lembrando-se de sua remota infância, decidiu presentear João com um amigo canino.
O momento da entrega foi histórico para o pequeno, lembraria-se daquela cena para o resto de sua vida. Seu pai chegando em casa carregando uma grande caixa de papelão perfurada lateralmente por orifício redondos, uma caixa que se movia e fazia grunhidos indecifráveis. Como esquecer tamanha excitação, a curiosidade e a ansiedade, imensas, pareciam não caber em seu pequeno corpo. No fundo sabia do que se tratava, mas não podia controlar a aquela vontade irrepreensível de abrir logo a caixa.
De fato suas suspeitas se confirmaram, um pequeno filhote de cão o aguardava, tão ansioso quanto ele, no interior da caixa. Coberta por uma pelagem branca, um fuço curto e um olhar sagaz, a pequena cadelinha latia e saltava inquietamente na caixa ao ver seu novo amigo. Um elo incrível estabeleceu-se entre eles imediatamente. E em poucos dias aquela pequena bolinha de pelos, destruidora de plantas e sapatos, havia transformado completamente a disposição do pequeno João, e com isto ganho a simpatia de todos na casa.
Mas em que medida ainda somos capazes de compreender a relação entre uma criança e seu cachorro? Creio que com o passar dos anos embrutecemos e perdemos a capacidade de valorizar eventos singulares como sendo únicos e especiais, a experiência nos leva a generalização e a redução destes importantes acontecimentos carregados de enormes significados para uma criança. E assim foi a relação entre João e sua cadelinha, repleta de profundos sentimentos de amizade e carregada de amores incondicionais. Compartilharam muitos momentos e desenvolveram-se, cada um na sua velocidade, ao longo dos anos.
Eis aí o ponto fundamental desta história, o menino e o cão constituíam dois organismos distintos, com diferentes períodos de maturação. Porém, muito embora João compreendesse em partes esta importante diferença, nada o preparou para inevitável experiência da morte. Nada revela, ou afirma, ainda mais a crueza da vida do que a própria morte, seu termino, objetivado assim ao alcance da mão, nos aproxima de nossa verdadeira e efêmera natureza. É uma parte intrínseca de nosso amadurecimento. Mas nem por isto indolor, muito menos quando em circunstâncias tão emotivas quanto estas.
O envelhecimento de sua companheira e a perda gradativa de suas capacidades físicas foi um duro golpe para o menino. Acostumado a contar com ela em todos os momentos, ficou profundamente abalado quando ela adoeceu seriamente pela primeira vez. A possibilidade de sua morte, até então inconcebível, despontou sombriamente no horizonte. Percebendo o drama que se desenhava, seu pai promoveu longas conversas com João sobre o tema, mas sempre num tom otimista de recuperação.
Entretanto, todos têm a sua hora, e nem mesmo o amor mais puro, como o de uma criança por seu cachorro, é capaz de evitar a única certeza absoluta. Foram dias horríveis para a família, João voltara à velha introspecção taciturna e uma atmosfera soturna pesava sobre a casa. Tal como uma ferida aberta que cicatriza com o tempo, com o longo passar dos anos as coisas foram voltando gradativamente à normalidade, o menino recuperou parcialmente sua disposição e a família voltou a desfrutar de um clima cordial.
Porém o pequeno João manteve uma sobra sobre seu olhar, uma lembrança profunda da antiga dor, como uma marca em sua alma que o advertia permanentemente a nunca mais abrir-se de tal forma com qualquer criatura que fosse. Ou pelo menos, não enquanto não surgisse outra cativante cadelinha branca de fuço curto.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Hipocrisias do Gênero


Toda tensão se dissipara em menos de um segundo, porém ao invés de um reconfortável relaxamento dos músculos e da alma, como de costume, o terrível peso da culpa assomou-se sobre seus ombros. Um silêncio constrangedor imperou no momento seguinte. Invejou profundamente todos os fumantes, capazes de contornar de forma natural aquela embaraçosa situação com um simples movimento das mãos e um acender de cigarro.
Contudo não possuía a mesma sorte, largara o tabaco há muitos anos e estava fadado a encarar sua companhia sem a presença do cigarro. Fora ela quem quebrara o silêncio que já se estendia longamente para além do constrangimento. “Tudo bem com você?” Era óbvio que não estava tudo bem com ele, além da ausência da fala estava inquieto e nervoso. Nitidamente perturbado.
Sua voz saiu tremida, as palavras pareciam trancadas na garganta. Quase gaguejando respondeu: “Sim, estava apenas pensando.” Mas como era perturbadora aquela situação. E pensar que minutos atrás estavam no mais elevado nível de intimidade, e em grande sintonia também. Todavia agora agiam como completos desconhecidos que foram recentemente apresentados em um contexto desfavorável.
Uma imensa parcela da responsabilidade por este impasse era sua. Era nele que residia toda culpa e remorso que se espalhavam pelo ar congelando o espaço existente entre os dois. Resmungou algumas palavras incompreensíveis antes de levantar e buscar uma cerveja na geladeira. Ela, tomada por aquela atmosfera fria e coberta pelo lençol o máximo possível, perguntou-lhe se queria ir embora. Sim, algo gritava dentro dele. Pegue suas roupas e fuja para rua. Mas sabia que aquilo apenas agravaria sua culpa.
Voltou a sentar na borda da cama, deu mais um gole em sua bebida e começou a falar. Divagou sobre os mais variados assuntos enquanto ela silenciosamente ouvia com atenção e assentia com indiferença. Ela deixou que ele falasse tudo o que queria, pois percebera uma gradativa redução em seu nervosismo enquanto falava. Após alguns minutos de intenso falatório estava tranqüilo novamente, e mais que isso, ela voltara a sentir atração por ele.
Ela permitiu que discorresse ainda mais em seu monólogo, quando percebeu uma pausa mais longa avançou sensualmente sobre seu corpo. Todas suas justificativas e barreiras morais, habilmente levantadas na última meia hora, ruíram com aquele avanço repentino. Inevitavelmente conviveria com a culpa, e ela, com o prazer.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Catártico


Numa longínqua nascente no alto de uma serra escarpada, um fluxo contínuo e exíguo de água brota de uma fenda nas rochas. O trajeto é imenso, quilômetros de distância separam o frágil afluxo de seu oceânico destino. Grande parte da água que flui desta origem não alcança seu fim, desvia-se, evapora-se, perde-se em trechos duros e secos do caminho.
Assim operam os seus pensamentos ordinários, com labor e dificuldade percorrem distâncias enormes, unindo-se a pequenos afluentes na tentativa de alcançar seus remotos objetivos. Num esforço constante para evitar que o pequeno fluxo se perca, reduz os obstáculos e opta pelos caminhos mais curtos possíveis. E sem conhecer seu destino além da próxima curva, os mantêm correndo fragilmente pelo tortuoso curso.
Mas o pensamento agora lhe afluía em profusão, uma torrente incessante de idéias jorrava do espaço existente entre suas orelhas. Como a cabeceira distante de um rio onde a nascente há muito não recebia a chuva devida e que subitamente, tomada pelas escuras nuvens que se formam e precipitam ao seu redor, passa a correr e transbordar num fluxo massivo e incontrolável serra abaixo.  Assim estavam seus pensamentos, impossíveis de ser concatenados ou restringidos.
A origem desta exuberância desmedida, incomum no cotidiano desta criatura, estava relacionada a um instante de iluminação, um momento de clareza que o acometeu, onde tudo se encaixava e fazia o mais perfeito sentido. Porém, a compreensão súbita na forma de uma revelação aguda passa ao largo de um processo tranqüilo, pelo contrário, pode ser traumático, deixando marcas e cicatrizes. Trata-se da revelação da mais completa incompreensão, um deslocamento muito brusco de posições. Ainda mais quando a descoberta vincula-se ao âmago de nossa existência, ao propósito ao qual dedicamos toda nossa vida.
Foi o que lhe aconteceu enquanto lia seu jornal, de pantufas e roupão, duas semanas após ter se aposentado. Ninguém lhe ligou, e por mais que tenha procurado por alguma notícia relacionada, a sua empresa não parou de funcionar. As nove e trinta cinco da manhã descobrira que sua vida havia passado em vão, anos de dedicação à causa errada culminaram com uma epifania fulminante. Compreendera tudo, mas tudo estava errado.  
Fora a chuva na cabeceira. Segundos depois os níveis subiam e somavam-se em sua mente num volume impossível de ser escoado em segurança. Precipitavam-se ladeira abaixo violentamente, rompendo barragens e barreiras de forma indiscriminada, levando tudo que inadvertidamente atravessasse seu caminho. Após alguns escassos minutos neste ritmo frenético a torrente cessou repentinamente. Sua esposa ao voltar da feira o encontrou imóvel na sua poltrona. Havia por fim arrebentado uma artéria vital de sua exaurida cabeça.