quinta-feira, 5 de julho de 2012

A Passagem


Alguém uma vez me disse que o tempo era relativo. Na época, apoiado nos meus parcos conhecimentos de física, percebi que algo me escapava na sentença, era incapaz de compreender seu verdadeiro sentido. Ontem, de forma muita abrupta e aguda, a compreendi em sua totalidade. Singrava velozmente de magrela pelas ruas atulhadas da cidade, como de costume, pedalava entre os carros atrasado para o trabalho.
Há alguns meses atrás adotei este meio de transporte intraurbano, além de saudável e menos estressante me agradou muito a ideia de observar a cidade nesta velocidade. As pessoas ganham mais contornos e profundidade, os prédios e árvores revelam detalhes impossíveis de serem percebidos de carro ou ônibus, o borrão dos vultos se vai e tudo se passa como uma película de super 8, levemente acelerada pelos frames em sequência. Sem falar na vantagem de ainda assim estar em movimento rápido de passagem, cruzando rostos e carros sem se preocupar com qualquer julgamento externo. Praticamente alheio a todo aquele caos urbano.
Naquela manhã era precisamente isto que eu fazia, atrevessava velozmente um congestionamento enquanto observava as pessoas que ficavam para trás. Quando num grande cruzamento, trancado pelo excesso de veículos, fui repentinamente arremessado ao ar por um carro que trocou subitamente de pista ao arrancar em alta velocidade. Não vi nem a cor do maldito. No momento do impacto prestava atenção nas pessoas que atrevessavam na minha adjacência a faixa de pedestres perpendicular a via.
Porém, aquele instante fugaz, precedido pelo baque surdo de minha bicicleta contra a lataria do carro, durou uma eternidade. Lembro dos semblantes sisudos que atravessavam a rua, desfigurando-se lentamente enquanto saiam do enquadramento. O azul claro e limpo do céu passou a predominar entre alguns galhos de árvores esparsos e manchas brancas disformes de nuvens que rodopiavam de forma vagarosa. O movimento gradual de ascensão era nitidamente percebido, primeiro pelo estômago que parecia acompanhar o movimento até a boca, muito depois pela suspensão total do peso do corpo. Uma agradável sensação de flutuação, só interrompida pela percepção da iminente queda.
Imaginem a aflição de uma mente que se percebe em um inevitável acidente, mais ainda, acompanhada por um terrível e agonizante sentimento de impotência frente à sucessão de lentos acontecimentos que se desdobram diante de si.  Tive tempo suficiente para refazer e amaldiçoar cada segundo do meu dia antes do acidente. Dizem que toda sua vida passa diante dos seus olhos em momentos com este, no meu caso foram as vidas dos outros que se sucederam em sequência enquanto voava pelos ares.
Conforme caia lentamente, provocando a retração do então expandido sistema digestivo, os rostos dos transeuntes voltavam a figurar em cena. E para cada um que se fixava um fenômeno estranho ocorria, o olhar dilatava-se e perdia-se em histórias de vida. Um a um todos reveleram, numa torrente incessante de imagens que fluiam na minha direção, suas trajetórias, medos, anseios e desejos. Ao cabo de infinitas horas de histórias, sentia-me inundado de tanta vida que a minha própria perdeu em parte sua relevância.
Fui intensamente atingido por toda aquela vida em abundância, juro que percebi o momento piegas em que uma magra lágrima brotou em meu olho. Todos aqueles dramas, comédias e tragédias levaram-me a um breve e pleno momento de comunhão com a humanidade. Era tudo tão sereno. Recordo que cheguei a me perguntar se afinal não seria aquilo a morte, mas fui rapidamente contrariado pela dura realidade.
O brusco estrondo do ruído da cidade, ampliado em um volume absurdo, acompanhado do doloroso impacto contra o asfalto da rua, aceleraram novamente a sequência de eventos. Como em fast forward vi rostos desconhecidos ao meu redor, o azul do céu borrado pelo movimento, um teto branco, pessoas de uniforme, mais teto branco e a total escuridão. Acordei num leito de hospital, com uma porção de tubos enfiados e sem poder me mexer sem dor.
Estava todo escalavrado, doíam-me até os pensamentos. Fui recordando lentamente os acontecimentos pretéritos, não havia ninguém no quarto. Vi a campainha para acionar a enfermeira sobre a mesa ao meu lado, mas não tive a menor vontade de chamá-la. Permaneci aquela madrugada insone, lembrando as histórias das pessoas que fluíram até mim, nunca mais estaria sozinho. Esta noite durou outra eternidade.

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