terça-feira, 4 de setembro de 2012

Pergaminhos do Barqueiro


Não sei como vocês imaginam o pós-morte, mas acreditem-me, não há nada de harpas, nuvens ou querubins pelados. Existe apenas o frio, um frio lancinante que atravessa nossas almas, desmanchando-as pedaço por pedaço interminavelmente. Isto e um imenso vazio que nos aflige com a mais desprezível indiferença, reduzindo-nos a sombras errantes de mudo desespero.
Vagamos por infinitos de desinteresse e silêncio, ruminando lembranças passadas como gado num triste descampado. Não há interação entre nós, creio até mesmo que muitos não sejam apenas indiferentes em relação a tudo, mas cegos para qualquer coisa além de si. O que torna ainda mais irônico o fato de passarmos grande parte da vida preocupados com nós mesmos, uma vez que no fim teremos como única companhia nosso próprio egoísmo.
Por vezes nutria uma débil esperança de que isto fosse o purgatório, que em algum lugar neste vasto desterro encontraria a montanha espiralada onde são purificadas as almas de seus pecados em vida. Nestes momentos ansiava não tanto pelo arrependimento que levaria ao paraíso, mas sim por alguma forma de transição deste lugar. Porém percebi que a expectativa não passava de uma ilusão, uma ferramenta para lidar com a nossa incapacidade de encarar a eternidade. Somos limitados em nossa natureza finita, mancos cognitivos impossibilitados de conceber o real sentido da atemporalidade. Constatação que tornou o meu desespero ainda mais presente, reduzindo minha indiferença.
Foi o que o viabilizou este mínimo lapso de motivação, fagulha que brilhou fracamente em meu peito, incitando-me a uma atitude. Dominando como pude a apatia que imperava percorri as mais distantes sendas, e entre campos estéreis e rochedos áridos me perdi inúmeras vezes sem saber o que buscava ou que resolução me colocara naquela direção. A paisagem tornou-se cada vez mais inóspita e desoladora, já não encontrava alma alguma em meu caminho.
Cruzei vales e penhascos onde nuvens carregadas de fúria pareciam rugir contra mim. Labaredas de fogo vibravam nas entranhas daquela massa cinzenta disforme. Um espetáculo realmente aterrador caso houvesse algo a ser temido, pois o meu receio maior era o vazio, era o retorno aquele contido desespero. Ao fim da vasta tempestade encontrei-me no interior de uma várzea inundada, um pântano sombrio e pestilento, banhado pelo manancial que tanto procurava.
Segui o curso d’água até tornar-se um caudaloso rio, suas margens expandiram-se para além do alcance da vista, sua cor tornou-se turva e sua água, densa como mercúrio, adquiriu uma placidez mórbida. Numa enseada grande como uma baía divisei à distância a figura de um barqueiro, pareceu-me encurvado pelo peso dos milênios e magro como uma ossada. Era Caronte, o barqueiro de almas. 
Ao me aproximar suas órbitas vazias me contemplaram, num segundo percorreu o vazio da minha alma e descobriu minhas intenções. No mesmo instante informou-me suas condições: levaria esta minha mensagem escrita num pergaminho contanto que eu guiasse a barca no seu retorno a margem. Logo percebi o que estava em jogo nesta negociação, porém não tinha meios para a barganha.
Redijo esta carta na murada da barca, numa ínfima tentativa de alertá-los quanto à efemeridade da vida. Sei que conselhos partem das fontes mais hipócritas possíveis, e desta vez não é diferente. Mas permitam-me fazê-lo - não fundamentem suas vidas em medos e credos absurdos, sustentados por quem nada sabe além do próprio dogma, porém, não a torne demasiada frívola ou egocêntrica, pois não há uma segunda chance. Não sei ao certo qual será o destino destas palavras, afinal ainda temos Cérbero pela frente, entretanto o meu, está traçado pelo resto da eternidade.  

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