Numa longínqua nascente no alto de uma serra escarpada, um fluxo contínuo e exíguo de água brota de uma fenda nas rochas. O trajeto é imenso, quilômetros de distância separam o frágil afluxo de seu oceânico destino. Grande parte da água que flui desta origem não alcança seu fim, desvia-se, evapora-se, perde-se em trechos duros e secos do caminho.
Assim operam os seus pensamentos ordinários, com labor e dificuldade percorrem distâncias enormes, unindo-se a pequenos afluentes na tentativa de alcançar seus remotos objetivos. Num esforço constante para evitar que o pequeno fluxo se perca, reduz os obstáculos e opta pelos caminhos mais curtos possíveis. E sem conhecer seu destino além da próxima curva, os mantêm correndo fragilmente pelo tortuoso curso.
Mas o pensamento agora lhe afluía em profusão, uma torrente incessante de idéias jorrava do espaço existente entre suas orelhas. Como a cabeceira distante de um rio onde a nascente há muito não recebia a chuva devida e que subitamente, tomada pelas escuras nuvens que se formam e precipitam ao seu redor, passa a correr e transbordar num fluxo massivo e incontrolável serra abaixo. Assim estavam seus pensamentos, impossíveis de ser concatenados ou restringidos.
A origem desta exuberância desmedida, incomum no cotidiano desta criatura, estava relacionada a um instante de iluminação, um momento de clareza que o acometeu, onde tudo se encaixava e fazia o mais perfeito sentido. Porém, a compreensão súbita na forma de uma revelação aguda passa ao largo de um processo tranqüilo, pelo contrário, pode ser traumático, deixando marcas e cicatrizes. Trata-se da revelação da mais completa incompreensão, um deslocamento muito brusco de posições. Ainda mais quando a descoberta vincula-se ao âmago de nossa existência, ao propósito ao qual dedicamos toda nossa vida.
Foi o que lhe aconteceu enquanto lia seu jornal, de pantufas e roupão, duas semanas após ter se aposentado. Ninguém lhe ligou, e por mais que tenha procurado por alguma notícia relacionada, a sua empresa não parou de funcionar. As nove e trinta cinco da manhã descobrira que sua vida havia passado em vão, anos de dedicação à causa errada culminaram com uma epifania fulminante. Compreendera tudo, mas tudo estava errado.
Fora a chuva na cabeceira. Segundos depois os níveis subiam e somavam-se em sua mente num volume impossível de ser escoado em segurança. Precipitavam-se ladeira abaixo violentamente, rompendo barragens e barreiras de forma indiscriminada, levando tudo que inadvertidamente atravessasse seu caminho. Após alguns escassos minutos neste ritmo frenético a torrente cessou repentinamente. Sua esposa ao voltar da feira o encontrou imóvel na sua poltrona. Havia por fim arrebentado uma artéria vital de sua exaurida cabeça.


Nenhum comentário:
Postar um comentário