sábado, 17 de dezembro de 2011

Sonora Madrugada


Amavam-se. E isto lhes bastava. Em momentos como este, complementavam-se de tal forma que suas individualidades pareciam diluir-se numa confusa história comum. Caminhavam entrelaçados pela orla noturna da praia, uma leve brisa que soprava da terra trazia aromas distantes e resfriava seus corpos a ponto de estreitarem-se um no outro o máximo possível. Era uma sensação agradável, um frio que fazia com que se sentissem mais vivos, mas que também podia ser facilmente reconfortado no calor do outro.
O céu, incrustado de estrelas apenas como o firmamento de um litoral afastado de qualquer cidade grande sabe ser, iluminava palidamente a areia sob seus pés. Nada mais os preocupava durante aquele instante, todos seus problemas e incertezas vagavam quilômetros a margem de suas rotas. Estavam leves e distraídos. Suas atenções divagavam sem rumo certo, entre as sensações de seus corpos e seus sentimentos de momentânea plenitude.
Por várias vezes aquele silêncio denso, ritmado pelas vagas que quebravam junto à praia, esteve a ponto de ser rompido por algum comentário casual. Mas nenhum dos dois estava disposto a interromper a confortável situação. Mantinham-se calados lado a lado. Caminhando e refletindo sobre a felicidade e a fugacidade daquele instante. Eram românticos, mas não ingênuos. Tinham a certeza de que se amavam naquele preciso momento, porém temiam o futuro e sua ausência de garantias.
Desconheciam até quando seria sustentável sua situação e não estavam dispostos a pensar muito a respeito, seu desejo era permanecerem assim de forma indeterminada. Caminhariam até onde a areia se estendesse, enquanto a noite durasse ou a brisa soprasse. Enquanto as ondas quebrassem e as estrelas cintilassem, se manteriam unidos, entrelaçados num abraço estreito rumo à desilusão.

domingo, 20 de novembro de 2011

Clichês


Como dizia meu tio, em noites que o espírito parece não caber no corpo a melhor coisa a fazer é tocar uma, virar para o lado e dormir. Era o que eu deveria ter feito ao invés de vestir uma camiseta surrada e sair para a rua naquela noite abafada de primavera. Uma atmosfera inebriante pairava no ar, pessoas caminhavam em profusão numa espécie de movimento desordenado, como num chamado da natureza. Havia algo de etéreo na situação, algo na ordem dos sentidos, uma leve impressão de imaterialidade que lembrava vagamente um sonho distante, um déjà vu.
Percorri ruas e vielas conhecidas na busca por cigarros e cervejas, mas por mais que andasse não encontrava os estabelecimentos que procurava, havia algo de muito estranho naquela noite, o bairro estava exatamente igual ao usual, mas toda vez que chegava ao destino planejado havia um lugar diferente do esperado. Após a segunda tentativa frustrada resolvi interagir a fim de obter alguma informação, só então percebi que as pessoas que por mim passavam não tinham rosto.
Um borrão disforme ocupava o lugar onde deveriam estar os olhos, o nariz e a boca dos transeuntes. Tamanho foi meu espanto ao interceptar um sem rosto e perceber que todos que por mim passavam eram assim, que imediatamente toquei minha face na procura de um nariz e outras cavidades. Uma breve sensação alívio. Eu ainda tinha um rosto. Porém era o único a minha volta, o restante da multidão estava anônimo e sem identidade.
Esfreguei os olhos na esperança de que houvesse algo de errado com a minha visão, mas apenas as faces das outras pessoas estavam desfiguradas, o restante permanecia focado e inalterado. Fui acometido por uma tremenda confusão, beirando ao desespero achei que estava enlouquecendo. Mas num instante de rara lucidez percebi que podia estar sonhando, um sonho extremamente realista, detalhado e consciente. Afinal a razão sempre encontra seus meios para explicar o que não tem sentido, mesmo que seja apelando para uma instância que ela não controla.
Então estava sonhando. Segui caminhando e chutando pedras enquanto meditava, que constatação estúpida para se ter durante um sonho. Perde todo o propósito de estarmos sonhando se percebemos que nada daquilo é real, ainda mais quando percebido desta forma covarde, como um mero simulacro da realidade.
Enquanto pensava e vagava sem destino as pessoas iam desaparecendo das ruas, e após algumas quadras o bairro estava completamente vazio. Eu estava só num sonho vívido. Foi quando me ocorreu a tentativa de acordar. Belisquei-me com vigor, mas nada ocorreu. Tapas na cara também não funcionaram. Apelei para água, mas foi em vão. Estava preso num universo onírico solitário. Lembrei-me de um filme onde o cara ficara preso durante vários anos num sonho que não passara de minutos e tive muito medo de não conseguir mais acordar.
Depois me ocorreu outro filme onde o sonho é apenas o fugaz instante entre a vida e a morte, e torci para que fosse este o caso, não agüentaria a sina de viver sozinho durante uma vida inteira. Por fim pensei na Alice e em seu mundo de fantasias e tive uma pontada de inveja. Só então me ocorreu que o sonho é uma ferramenta literária muito usada, e que eu não estava apenas sonhando. Portanto, ao menos que esta história fosse uma reedição das mil e uma noites, eventualmente acabaria em breve...

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Razão Suicida


Pensava na morte com freqüência. Não na morte em geral de milhares de pessoas que ocorrem todos os dias, mas em uma morte específica. A sua morte. Era um pensamento que o invadia com uma freqüência invariável. Como morreria? Quando seria? Eram perguntas que nunca o abandonavam. Não sentia medo propriamente da morte, mas sim uma curiosidade latente que dificilmente podia ser demonstrada. Ninguém gostava de versar muito sobre o assunto, na maioria das vezes o tema era rapidamente trocado e qualquer tentativa de retomá-lo era reprimida.
Talvez sua curiosidade provesse de um embaraçoso histórico familiar de suicídios, algo que é considerado um tabu maior que a própria morte. O fato é que possuía uma longa carreira ascendente de suicidas. O mais longínquo e distante que ouvira falar era um bisavó seu que numa fria manhã de domingo fora encontrado pendurado no celeiro com a pele azulada, olhos esbugalhados e sujo com suas próprias fezes que no momento derradeiro escorreram perna abaixo. Considerava esta uma forma horrível de tirar sua própria vida e a associava com uma espécie de vergonha, mas imaginava que talvez fosse à maneira usual de se matar daquela época.
Sua tia-avó pelo lado materno havia sido uma famosa cantora de rádio durante os anos dourados e seu suicídio chegou a ser noticiado por alguns importantes jornais do país. Contavam que fora encontrada na banheira de seu solitário apartamento com os pulsos cortados, junto a uma garrafa vazia de champanhe francês e a um toca discos a girar eternamente. Mas havia a versão familiar, muito menos charmosa, de que havia ingerido veneno de rato e arrematado com uma garrafa uísque nacional. Para ele o fato de haverem duas versões para a morte de sua tia-avó apenas tornava a questão mais complexa, a final haveria importância na forma como as pessoas morrem ou decidem tirar suas vidas.
Por fim havia um primo de seu pai, que numa bela tarde de um dia comercial voltou mais cedo para casa, estacionou o carro na garagem e manteve o motor ligado enquanto sufocava com os gases do escapamento. Naquele dia havia sido demitido e certamente não tinha a coragem necessária para encarar sua mulher, filhos e gerente do banco. O contexto tornava aquela morte condenável frente aos olhos dos que ficaram, mas isto suscitava outra questão. De que valeria o juízo dos que ficaram para quem já foi?
Em parte eram estes problemas que lhe ocorriam. Uma vez dito que a morte era a única certeza, sabia que poucas coisas na vida podiam ser controladas e imaginava que o seu oposto talvez fosse a única capaz de ser premeditada se levadas em consideração as variáveis existentes. Ao fim e ao cabo, se todos nos extinguiremos enquanto organismos e o nosso livre arbítrio não passa de uma ilusão moderna, talvez o suicídio possa ser justificado racionalmente. Uma última e única verdadeira escolha premeditada.
Porém sempre haveria os imponderáveis, capazes de alterar o sentido da morte. Teria que minimizá-los ao máximo a fim de evitar interpretações errôneas sobre seu destino. Seria uma escolha filosófica e como tal ficaria registrada em diversos lugares para garantir seu verdadeiro significado. Resoluto e até mesmo excitado em suas convicções passou a escrever seu manuscrito post mortem, justificando suas escolhas e combatendo detalhadamente qualquer tentativa de determinação sobre sua decisão.
Foi um trabalho árduo que levou mais tempo do que o esperado, mas por fim foi impresso e seria destinado a três instituições diferentes no dia anterior ao seu suicídio, a uma universidade, a um jornal e a delegacia local. Por questões pessoais escolheu se atirar do topo de um prédio. Era um clássico, mas já estava em desuso há algum tempo. Cairia, portando seu manuscrito, sobre um terreno baldio ao lado do prédio escolhido, para evitar ao máximo possível qualquer tipo de dano a outrem.
Na noite anterior ao dia escolhido dormiu um sono agitado, repleto de sonhos estranhos sobre uma queda sem fim. Mas nada disso o abalou, acordou disposto e resoluto a cumprir o seu destino, ou melhor, sua escolha. Seguiu seu ritual matinal acompanhado de café e jornal e saiu em direção ao prédio que havia escolhido, era há algumas quadras de sua casa, estava abandonado e não haveria problema algum para acessar o topo.
Caminhava tranqüilo pela rua quando dobrou aquela que seria sua ultima esquina e passou a avistar ao longe o espaço vazio onde teria que mergulhar. Suas pernas fraquejaram e seu sangue pareceu-lhe fugir da cabeça, sentiu-se tonto por um instante. Uma vertigem temporária que logo foi superada. Adentrou no prédio sem maiores dificuldades e passou a subir vagarosamente as escadas. Após longos minutos estava no terraço de frente para o abismo. Lembrou-se do sonho da noite anterior e voltou a estremecer, um sentimento estranho lhe percorreu a espinha, algo na sua intuição lhe dizia que não iria chegar até ali, que algo inesperado ocorreria e inverteria o rumo da história. Era um bom roteiro para ser seguido, mas não era o planejado.
No fundo, contava com um fator não premeditado, não acreditava no seu livre arbítrio e na sua teoria. Mas para efeitos práticos estava certo, ou pelo ao menos em consentimento com o universo, e mergulhou rumo a sua única e infinita certeza.

sábado, 20 de agosto de 2011

Dreamers

The moon that could rarely be seen among the buildings that night shone brightly in the sky, a light breeze blew gently and brought the sweet aroma of  her body towards me. She stood there leaning against the window, completely nude, contemplating the night from a far, lost in her thoughts. Where would her worries lie? What did this woman  dream of?
When the sex was good this was her normal behavior, slip out of bed and sit in front of the darkness. She would sometimes smoke, others drink, she would stay there for minutes and minutes pondering and wandering around in her own thoughts. During these moments I would never talk, just stay there in silence and stare.
At first I thought it was strange, thinking I had done or said something wrong to induce such behavior. As time went by I got used to the ritual. I’d normally limit myself to admiring such a beautiful silhouette while I got lost in my own daydreams until falling into a calm and serene sleep.
But that night, before I could completely fall asleep, she turned to me, looked me in the eye, her body slightly bristled by the breeze and lit by the moonlight. She looked even more beautiful than usual. Her serene expression turned slightly doubtful and her defiant posture reminded me of a Sphinx who in an indifferent manner proposed: Decipher me or  I will devour you.
Deep inside I knew this moment would come, and that all that thinking would culminate to conclusion that I would inevitably discover. I wasn’t sure of the topic or matter, but I knew it would have implications upon my person. She was there rigid like a statue made of alabaster, staring me down. The next move was mine, and it would be key to the future of our relationship.
Today a realize that the best choice would have been to simulate a deep sleep, instead of an innocent “what’s wrong baby?”  She slowly and serenely approached me and coldly asked what was love to me. It was a captious question, one of those that have no right or wrong answer. My first thought was to answer that it was an illusion, a fantasy that we created and looked for to feel better about ourselves. But at the last minute I gave in, and opted for the more romantic alternative about the compatibility of souls. Shortly after she maliciously asked me if I loved her, question to which I promptly responded with an effusive yes. At this point I was already half devoured by the fascinating mythological creature, but I only realized it when the third question came “So why don’t you act as you have described?”.
I tried to argument as I could, clumsily and with a high level of disconnect I must confess. But she was inflexible in her conclusion, she stated that I was platonic and incongruent, that I idealized reality and practiced something completely different. Basically, I lived in world completely disconnected from reality and that in that way I was harming her. At that moment I stopped dead on my tracks and the reality of the situation came to me: “Fuck! The dreamer is an empiricist”.

Translated by Amanda Wolffenbüttel



quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Sonhadores

       A lua, que raramente aparecia entre os prédios, aquela noite brilhava cheia no céu, a brisa que soprava suave trazia o doce aroma do seu corpo até mim. Parada, completamente nua em frente à janela, contemplava a noite ao longe com um olhar perdido entre vagos pensamentos. Onde repousariam agora suas preocupações? Com o quê sonharia essa bela mulher?
Quando o sexo era bom este era o comportamento habitual, esgueirava-se para fora da cama e postava-se de frente para a escuridão. Às vezes a fumar, outras a beber, ficava ali durante muitos minutos refletindo e divagando. Nestes momentos nunca conversava, apenas calava e mirava.
No começo estranhei a atitude, achando que havia feito, ou dito, algo de errado para tal. Com o passar do tempo acostumei-me com o ritual. Normalmente limitava-me a apreciar aquela bela silhueta reflexiva enquanto me perdia em meus próprios devaneios até cair num sono sereno e tranqüilo.
Mas esta noite, antes que eu pudesse adormecer completamente, ela virou-se para mim e encarou-me com seu corpo despido, levemente eriçado pela brisa e fracamente iluminado pelo luar. Parecia ainda mais linda do que o habitual. Seu semblante sereno tomara a forma de uma leve expressão de dúvida e sua postura desafiadora lembrava-me uma Esfinge que de forma indiferente propunha: Decifra-me ou te devoro.
Intimamente suspeitava que esta hora chegaria, todo aquele pensar culminaria em alguma conclusão que inevitavelmente seria comunicada a mim em algum momento. Desconhecia o tema e o método, mas sabia que traria alguma implicação para minha pessoa. E lá estava ela, rígida e imóvel como uma estátua de alabastro a me encarar. O próximo passo era meu, e seria fundamental para o futuro do nosso relacionamento.
Hoje creio que a melhor escolha teria sido fechar os olhos e simular um sono profundo, ao invés de um inocente “O que foi?”. Ela aproximou-se da cama e friamente perguntou o que era o amor para mim. Era uma pergunta capciosa, daquelas que não há uma resposta certa. Pensei rapidamente em responder que para mim era uma ilusão, uma fantasia que criávamos e buscávamos para nos sentir bem, mas no último instante cedi à alternativa romântica da complementaridade das almas. Em seguida perguntou-me maliciosamente se eu a amava. Ao que prontamente respondi com uma afirmativa efusiva. A essa altura já estava parcialmente devorado pela bela criatura mitológica, mas só percebi quando adveio a terceira e última pergunta do enigma “E por que não o praticas conforme descreveu?”.
Argumentei como pude, um pouco confuso e desconexo confesso. Porém ela foi inflexível na sua conclusão, afirmou que eu era platônico e incongruente, que idealizava o real e praticava algo totalmente divergente. Em suma, que vivia em um mundo inteiramente descolado da realidade e que assim a estava prejudicando. Foi aí que subitamente caíram-me os butiás dos bolsos e pude compreender a situação: “Fodeu! A sonhadora era empirista.”.


sexta-feira, 8 de julho de 2011

Ronda Noturna


Eram sempre assim as noites no cais do porto, frias e vazias. Houve uma época em que éramos vários vigilantes a fazer a ronda noturna do local, costumávamos nos encontrar durante as refeições para conversar e rir um pouco. Hoje em dia sou o único que restou. Responsável por guardar vários quilometros de margem do Guaíba, caminho por entre docas e navios como um fantasma pela noite.
No inverno o frio é mais intenso e a solidão mais pesada, as horas se arrastam vagarosamente pelo meu velho relógio de pulso enquanto caminho por entre brumas. Às vezes faz tanto frio e o meu corpo está tão cansado que tenho vontade de me aninhar num canto e dormir a noite inteira. Mas nunca consigo, um maldito senso de dever, ou sei lá o que, me obriga a realizar no mínimo uma ronda por turno.
É um trabalho estúpido e frequentemente me pergunto quanto tempo ainda vai durar antes que alguém mais perceba isto. Não temo pelo emprego, creio que seria um imenso incentivo para buscar algo diferente, afinal ninguém sonha em ser vigilante de docas para a vida toda. Sempre gostei dos navios, acho que foi isso que me atraiu no início, seus cascos imensos e imponentes representavam para mim uma porta para o mundo, uma fuga para o insondável oceano.
Alguns já são velhos conhecidos e estão atracados aqui a mais de duas décadas. Gigantes de metal, adormecidos e abandonados à própria sorte. Por uns sinto uma simpatia quase familiar, uma verdadeira admiração por sua trajetória de viagens e aventuras, por outros, uma repulsa horrenda. São sinistros e escuros mesmo a luz do dia. Estão envoltos em histórias ruins e a noite parecem habitados por almas castigadas.
Todas as noites percorro o mesmo trajeto sem a esperança de encontrar algo diferente, uma ironia eu pensar nos navios como portadores de aventuras e emoções e realizar uma rotina junto a eles tão enfadonha e permanentemente inalterada. A noite vai se estendendo assim, por entre meus passos lentos e os ruídos surdos dos animais notívagos.
Porém, antes de amanhecer, como numa última ofensiva da noite contra o dia, a temperatura despenca ainda mais. No leste, o portador da luz já é contrastado ao fundo por tons azuis. É o meu instante favorito. O turno está no fim, a névoa sobre a água começa a se dissipar lentamente e o calor vai aumentando conforme os primeiros raios de sol vão surgindo.
Se há algum simbolismo ou poesia neste trabalho é neste preciso momento, quando mesmo no rigor do inverno mais intenso ou na noite mais longa do ano, o sol reafirma o seu destino e nasce mais uma vez no horizonte, garantindo o calor e a vida como era esperado, mas não fatalmente garantido. Eu contribuo como posso, suportando e observando daqui, enquanto ele suporta e batalha de lá.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Tempestades De Verão

Ela vem surgindo rapidamente, primeiro como um chiado indissociado que ganha espaço e volume. Depois, zunidos e assobios que tornam a atmosfera cada vez mais pesada. Ao longe, escutamos a batida de uma porta. É como uma certeza em que não queríamos crer - a tempestade está chegando.
O ar se enche de movimento, nossa alma parece inflar e o coração teme que ela escape. As pessoas apertam o passo como se pudessem fugir do temporal, seus lixos e saias voam com o vento. As roupas nos varais tremulam como bandeiras no campo de batalha. A natureza se aproxima através de sua forma mais intensa e brutal.
Os mais comedidos fecham suas janelas e trancam suas portas. Porém, sempre há aqueles em que a emoção sobressalta a razão. Que ganham a rua e desafiam a tormenta. Como loucos, andam contra a força do vento abrindo os braços e gritando disparates. Urram contra Deus e o mundo sua bravura.
A tempestade responde intensificando sua força, pondo em prova nosso direito de existir. Árvores se dobram, vidros vibram a ponto de romper, e uivos intensos espalham o temor por onde passam.
O ímpeto combativo arrefece, o medo passa a espreitar o coração dos mais ousados. Mas a emoção lhes rebenta o peito, já se foi o tempo de recuar, ali estão em seu derradeiro momento. Por fim, reúnem as forças restantes num último brado...
E são recompensados pelas gotas que lhes vertem a face. A chuva que cai opulenta toma o lugar da ameaçadora ventania. A calmaria que se anuncia promete a paz entre o homem e a natureza novamente. Contudo, a cada tormenta que surge há menos interlocutores dispostos a reivindicar nossa natureza. 

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Um Drink Antes do Inferno

Drink Cristal era o nome da boca. Soava como nome de zona de beira de estrada, o que de fato era, mas com o particular agravante de ser praticamente dentro de um arrozal. Conforme o costume, tinha uma luz vermelha sobre sua porta de entrada, que denunciava ou indicava aos viajantes a verdadeira finalidade do local. Há muito que eu hesitava em cruzar aquele umbral, se é que zona tem disso. Porém aquela noite tinha sido demasiado funesta para ir direto para a casa.

Sempre imaginara a perda do emprego como um fato ordinário a que todos estamos sujeitos, mais ou menos como a fatalidade da morte. Um evento objetivo causal, possível dentro da normalidade dos acontecimentos históricos de um homem. Porém quando aconteceu comigo, pareceu-me a maior das tragédias humanas. Estava numa situação onde o trabalho era minha única conexão com a realidade, não que eu o adorasse como exclusiva finalidade de vida, mas era o que havia me restado.

Acredito que exista uma fina ironia universal, é a mais cabal prova da existência de uma forma de inteligência que rege o mundo. Deus não é uma criança com uma lupa, é um roteirista com senso de humor duvidoso. Afirmo isto com base no encadeamento lógico que me deixou na porta deste puteiro maldito. Larguei o mestrado por causa dela e das crianças – pouco tempo, pouca grana, muita encheção – ela me largou por causa de um doutor em dermatologia (não sabia que existia doutorado em pomadas) e perdi o emprego devido ao estado calamitoso que me encontrava sem minha estrutura familiar.

Elaborei esta teoria enquanto voltava da empresa após a dispensa, dirigia amargurado, com um vazio no estômago e com a garganta trancada. Totalmente perdido, não sabia o que fazer ou para onde ir. Um misto de rancor e de indiferença brigavam dentro de mim no preciso momento em que vislumbrei ao longe a luz vermelha. Uma decisão ao menos eu havia tomado.

O lugar era pior do que eu imaginava, menor e mais sujo, parecia uma sala de espera do Inferno. A disposição das cadeiras, a posição do bar ao fundo e uma porta fechada passando o balcão, davam ao ambiente esta diabólica impressão. No momento que adentrei o lugar todas as atenções se voltaram para mim, constrangido, não consegui olhar para o rosto das poucas pessoas do local e caminhei automaticamente até o bar. Atrás do balcão a garçonete parecia uma recepcionista de consultório em trajes inapropriados para a função. Como isso? De coque, óculos e cara de tédio.

Antes que pudesse pedir uma cerveja, a garota levantou os olhos e perguntou-me o nome. Espantado, olhei ao redor com mais calma e percebi que apesar da música e da iluminação típica de zona, as poucas garotas que havia estavam sentadas lendo revistas, assim como os homens do lugar. Um calafrio me subiu pela espinha até a nuca. Olhei para a garota e respondi entre engasgos. Ela consultou um caderno e rebateu após alguns instantes – Seu nome não está na lista de hoje.

Neste instante, a porta do fundo se abriu fazendo um barulho medonho, um bafo quente invadiu a sala e a mulher mais linda que já havia visto na minha vida surgiu e chamou por um nome que não me recordo. As pessoas sentadas se entreolharam, um sujeito se levantou e caminhou até a porta, aquela musa macabra, ruiva e flamejante, acompanhou o coitado até a porta com uma volúpia sem precedentes.

Boquiaberto, virei para o balcão, a garçonete/recepcionista olhou-me por cima de seus óculos com uma terrível malícia e disse que poderia me encaixar num horário se eu assim desejasse. Apavorado com a possibilidade de cruzar aquela porta, gaguejei algo incompreensível, e resoluto me pus em retirada da pocilga. Antes de atravessar a porta, porém, me virei e contemplei aquele triste ambiente. Foi o meu fim. Soltei um longo suspiro, voltei ao balcão e marquei a minha hora.

domingo, 27 de março de 2011

Beat Girl

Ela gostava de jazz. Apenas este fato já bastaria para despertar meu interesse. Era a primeira garota que eu conhecia que curtia jazz, não esse eletrojazz que rola nas rádios por aí, mas jazz clássico, de Brubeck e Coltrane. Talvez este anacronismo não fosse tão raro na cidade grande quanto parecia para mim, mas de fato ela toda parecia como que oriunda de uma outra época. Seus traços remetiam a uma inocência há muito perdida e eram acompanhados de uma melancolia permanente no olhar que lhe davam uma impressão ainda mais nostálgica. Fumava e falava com uma calma que literalmente hipnotizava os espectadores, que perdidamente buscavam seus grandes olhos entre nuvens de fumaça.

Conhecia quase todo o velho mundo e era surpreedentemente apenas alguns anos mais velha que eu. Junto a ela me sentia angustiado, como se estivesse até então na ante-sala da vida, esperando todos estes anos para descobrir este universo de infinitas possibilidades que ela me apresentava. Lugares, músicas, filmes, conhecia tantos e tão bem que me perguntava onde havia arranjado tempo para tanto.

Não consigo lembrar de como a conheci, creio que foi ganhando contornos e relevância conforme a descobria mais detalhadamente. A cada conversa ela ia conquistando mais espaço sobre minha mente, sempre versava sobre temas interessantes e possuía opiniões originais sobre quase todos assuntos. Sua influência sobre mim foi muito intensa, ao passo que em dois meses eu estava profundamente dependente daquela presença, nada mais me interessava além dela.

Uma noite estávamos num bar beatnik próximo da minha casa, cuja existência eu desconhecia, entre baforadas e batidas quando ela subitamente parou. Um sujeito havia entrado no bar e cortado sua respiração. Percebi no instante que havia algo errado, ela se recompôs e ensaiou um conversa desconexa, sua mente estava no balcão. Questionei-a sobre o cara, o óbvio ocorreu, era seu ex que a havia abandonado em Amsterdã no ano passado. Voltei sozinho para casa aquela noite.

Minha dúvida chegara ao fim, um convívio intenso com um cara mais experiente num apartamento cult, em alguma metrópole intelectual da Europa havia possibilitado uma experiência inesquecível. Como eu poderia competir com isto, meu universo limitado não me disponibilizava recursos para tanto. O cara era um sacana, largou ela sem dar nenhuma explicação, não sei se isto não contava a seu favor, mas ele era o cara que a iniciou e lhe ensinou tudo que sabia. Estava fadado à derrota.

De fato nunca mais fui procurado. Algum tempo depois ouvi falar que voltaram para a Europa. Quanto a mim, após esta experiência tratei de nunca mais me empolgar tanto, fiquei mais calmo e cético em relação as pessoas. Atualmente frequento bares esfumaçados em noites de jazz, impressionando novatas com poemas e filosofias pseudo-existencialistas...

quarta-feira, 9 de março de 2011

Garrett


Existe uma imagem que me ocorre com frequência, sua origem remete a histórias em quadrinhos e a mim parece a forma mais adequada para descrever a situação em questão. Trata-se de um local escuro, um tubo luminoso projeta imagens irregulares sobre alguém que não parece muito interessado. Há uma cerveja numa mão e um controle remoto na outra, a luz segue piscando contra seu rosto enquanto troca de canais aleatoriamente. Em uma sequência de quadros intercalados por um “zap” as mais diversas cenas surgem, acompanhados pelos mais esquisitos diálogos - noticiários de política externa, talk shows, programas de vendas e reality shows imbecis sucedem-se num mosaico medonho que por um breve instante de lucidez nos faz pensar que percebemos a realidade como um todo. Como se houvesse uma espécie de código por trás de toda essa informação e publicidade que nos permitisse ler as entrelinhas da humanidade e ver com clareza sua atual conjuntura, e a partir daí verificar seu provável rumo. Mas este instante é muito fugaz, ou o futuro muito desanimador, para que possamos fixar estas impressões, que facilmente escapam por entre os dedos deixando apenas a tela pulsante a nossa frente.

Talvez um estado de espírito entediado defina previamente esta situação, porém creio que a péssima qualidade dos programas favoreça o fluxo intenso de canais, contribuindo assim para o fenômeno descrito. Contudo, esta pretensa percepção não deve passar de uma ilusão absurda, uma vez que os programas televisivos, mesmo aqueles que se dizem informativos, são essencialmente formas diminutas e simplificadas de informação, feitos para serem digeridos o mais rápido possível sem o mínimo de critério. Logo, pensamos estar absorvendo criticamente esta grande massa de informação, enquanto que de fato estamos à deriva num oceano de publicidade sem conseguir se fixar numa bobagem exclusiva.

Porém as infinitas possibilidades permitidas pelo universo dos quadrinhos nos autorizam a imaginar uma pessoa com uma prodigalidade tal, capaz de não apenas reter um imenso fluxo de informações, mas de relacioná-las instantaneamente através de várias telas de forma simultânea. Supondo assim um indivíduo capaz de elaborar um panorama adequado a nossa teoria. Os fins para que usaria suas habilidades não seriam previamente definidos, mas a televisão como fonte de seus poderes sugere algo de pessimista, uma espécie de anti-herói desencantado com o mundo, relutante em acompanhá-lo e dele tomar parte. Seria alguém solitário, quase misantropo, capaz de usar suas faculdades em benefício próprio e de formas egoístas.

Analisando melhor seria um personagem chato, sacal em sua essência e existência, e precisaria de um ótimo roteirista e um bom contexto para gerar boas histórias. Mas seria um “herói” adequado e verossímil a realidade urbana moderna, onde a arquitetura, os indivíduos e seus hábitos permitem uma impessoalidade e um anonimato quase que total a seus habitantes.


quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Ensaios

Noite de verão, um calor intenso e uma umidade não precipitada pesam no ar. Não conheço melhor maneira de começar a escrever do que a descrição do ambiente, acho que é uma fórmula fácil, um clichezão barato, mas que possui suas finalidades e praticidades, como a localização rápida dos personagens no cenário. Saio para a varanda na expectativa de refrescar a mente e curtir o céu, mas não há estrelas, uma barreira de nuvens escuras se interpõe às constelações.

Tento fugir do estilo, se é que possuo um, porém minhas limitações impedem. Ouço um vizinho insone lavando suas roupas durante madrugada num andar superior, talvez ele relaxe sua mente através do trabalho doméstico. Meu cigarro insiste em apagar, talvez seja melhor mantê-lo assim, tem um cara com um tubo enfiado na garganta na contracapa do pacote. Meu avô morreu de câncer no esôfago.

Outro cacoete que me persegue, a autobiografia. Minha namorada afirma que meus contos são todos muito autorais, que não consigo me distanciar dos personagens. Enquanto isso morcegos chilram sobre minha cabeça, não tenho certeza se o som que o morcego emite pode ser considerado um chilro. Pouco importa. Acendo novamente o cigarro.

Escuto agora o som do chuveiro no andar da lavagem das roupas. Quem sabe meu vizinho não seja uma linda mulher que refresca seu corpo esguio deste calor grudento e opressivo. Ou talvez um gordo escroto que se masturba enquanto lava sua bunda imensa. Prefiro crer na primeira hipótese, fica mais bem escrito e é uma imagem melhor de se elaborar.

Após uns quinze minutos de reflexões, elaborações e autocrítica sinto-me mais leve e sonolento, perdi a vontade de escrever e me retiro para o interior do apartamento.