Pensava na morte com freqüência. Não na morte em geral de milhares de
pessoas que ocorrem todos os dias, mas em uma morte específica. A sua morte.
Era um pensamento que o invadia com uma freqüência invariável. Como morreria?
Quando seria? Eram perguntas que nunca o abandonavam. Não sentia medo
propriamente da morte, mas sim uma curiosidade latente que dificilmente podia
ser demonstrada. Ninguém gostava de versar muito sobre o assunto, na maioria
das vezes o tema era rapidamente trocado e qualquer tentativa de retomá-lo era
reprimida.
Talvez sua curiosidade provesse de um embaraçoso histórico familiar de
suicídios, algo que é considerado um tabu maior que a própria morte. O fato é
que possuía uma longa carreira ascendente de suicidas. O mais longínquo e
distante que ouvira falar era um bisavó seu que numa fria manhã de domingo fora
encontrado pendurado no celeiro com a pele azulada, olhos esbugalhados e sujo
com suas próprias fezes que no momento derradeiro escorreram perna abaixo. Considerava
esta uma forma horrível de tirar sua própria vida e a associava com uma espécie
de vergonha, mas imaginava que talvez fosse à maneira usual de se matar daquela
época.
Sua tia-avó pelo lado materno havia sido uma famosa cantora de rádio
durante os anos dourados e seu suicídio chegou a ser noticiado por alguns
importantes jornais do país. Contavam que fora encontrada na banheira de seu
solitário apartamento com os pulsos cortados, junto a uma garrafa vazia de
champanhe francês e a um toca discos a girar eternamente. Mas havia a versão
familiar, muito menos charmosa, de que havia ingerido veneno de rato e
arrematado com uma garrafa uísque nacional. Para ele o fato de haverem duas
versões para a morte de sua tia-avó apenas tornava a questão mais complexa, a final
haveria importância na forma como as pessoas morrem ou decidem tirar suas
vidas.
Por fim havia um primo de seu pai, que numa bela tarde de um dia
comercial voltou mais cedo para casa, estacionou o carro na garagem e manteve o
motor ligado enquanto sufocava com os gases do escapamento. Naquele dia havia
sido demitido e certamente não tinha a coragem necessária para encarar sua
mulher, filhos e gerente do banco. O contexto tornava aquela morte condenável
frente aos olhos dos que ficaram, mas isto suscitava outra questão. De que valeria
o juízo dos que ficaram para quem já foi?
Em parte eram estes problemas que lhe ocorriam. Uma vez dito que a morte
era a única certeza, sabia que poucas coisas na vida podiam ser controladas e
imaginava que o seu oposto talvez fosse a única capaz de ser premeditada se
levadas em consideração as variáveis existentes. Ao fim e ao cabo, se todos nos
extinguiremos enquanto organismos e o nosso livre arbítrio não passa de uma
ilusão moderna, talvez o suicídio possa ser justificado racionalmente. Uma última
e única verdadeira escolha premeditada.
Porém sempre haveria os imponderáveis, capazes de alterar o sentido da
morte. Teria que minimizá-los ao máximo a fim de evitar interpretações errôneas
sobre seu destino. Seria uma escolha filosófica e como tal ficaria registrada
em diversos lugares para garantir seu verdadeiro significado. Resoluto e até
mesmo excitado em suas convicções passou a escrever seu manuscrito post mortem, justificando suas escolhas
e combatendo detalhadamente qualquer tentativa de determinação sobre sua
decisão.
Foi um trabalho árduo que levou mais tempo do que o esperado, mas por fim
foi impresso e seria destinado a três instituições diferentes no dia anterior
ao seu suicídio, a uma universidade, a um jornal e a delegacia local. Por
questões pessoais escolheu se atirar do topo de um prédio. Era um clássico, mas
já estava em desuso há algum tempo. Cairia, portando seu manuscrito, sobre um
terreno baldio ao lado do prédio escolhido, para evitar ao máximo possível
qualquer tipo de dano a outrem.
Na noite anterior ao dia escolhido dormiu um sono agitado, repleto de
sonhos estranhos sobre uma queda sem fim. Mas nada disso o abalou, acordou
disposto e resoluto a cumprir o seu destino, ou melhor, sua escolha. Seguiu seu
ritual matinal acompanhado de café e jornal e saiu em direção ao prédio que havia escolhido, era há algumas quadras de sua casa, estava abandonado e não haveria
problema algum para acessar o topo.
Caminhava tranqüilo pela rua quando dobrou aquela que seria sua ultima
esquina e passou a avistar ao longe o espaço vazio onde teria que mergulhar.
Suas pernas fraquejaram e seu sangue pareceu-lhe fugir da cabeça, sentiu-se
tonto por um instante. Uma vertigem temporária que logo foi superada. Adentrou no prédio sem maiores dificuldades e passou a subir vagarosamente as escadas.
Após longos minutos estava no terraço de frente para o abismo. Lembrou-se do
sonho da noite anterior e voltou a estremecer, um sentimento estranho lhe
percorreu a espinha, algo na sua intuição lhe dizia que não iria chegar até
ali, que algo inesperado ocorreria e inverteria o rumo da história. Era um bom
roteiro para ser seguido, mas não era o planejado.
No fundo,
contava com um fator não premeditado, não acreditava no seu livre arbítrio e na
sua teoria. Mas para efeitos práticos estava certo, ou pelo ao menos em
consentimento com o universo, e mergulhou rumo a sua única e infinita certeza.


Nenhum comentário:
Postar um comentário