sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Razão Suicida


Pensava na morte com freqüência. Não na morte em geral de milhares de pessoas que ocorrem todos os dias, mas em uma morte específica. A sua morte. Era um pensamento que o invadia com uma freqüência invariável. Como morreria? Quando seria? Eram perguntas que nunca o abandonavam. Não sentia medo propriamente da morte, mas sim uma curiosidade latente que dificilmente podia ser demonstrada. Ninguém gostava de versar muito sobre o assunto, na maioria das vezes o tema era rapidamente trocado e qualquer tentativa de retomá-lo era reprimida.
Talvez sua curiosidade provesse de um embaraçoso histórico familiar de suicídios, algo que é considerado um tabu maior que a própria morte. O fato é que possuía uma longa carreira ascendente de suicidas. O mais longínquo e distante que ouvira falar era um bisavó seu que numa fria manhã de domingo fora encontrado pendurado no celeiro com a pele azulada, olhos esbugalhados e sujo com suas próprias fezes que no momento derradeiro escorreram perna abaixo. Considerava esta uma forma horrível de tirar sua própria vida e a associava com uma espécie de vergonha, mas imaginava que talvez fosse à maneira usual de se matar daquela época.
Sua tia-avó pelo lado materno havia sido uma famosa cantora de rádio durante os anos dourados e seu suicídio chegou a ser noticiado por alguns importantes jornais do país. Contavam que fora encontrada na banheira de seu solitário apartamento com os pulsos cortados, junto a uma garrafa vazia de champanhe francês e a um toca discos a girar eternamente. Mas havia a versão familiar, muito menos charmosa, de que havia ingerido veneno de rato e arrematado com uma garrafa uísque nacional. Para ele o fato de haverem duas versões para a morte de sua tia-avó apenas tornava a questão mais complexa, a final haveria importância na forma como as pessoas morrem ou decidem tirar suas vidas.
Por fim havia um primo de seu pai, que numa bela tarde de um dia comercial voltou mais cedo para casa, estacionou o carro na garagem e manteve o motor ligado enquanto sufocava com os gases do escapamento. Naquele dia havia sido demitido e certamente não tinha a coragem necessária para encarar sua mulher, filhos e gerente do banco. O contexto tornava aquela morte condenável frente aos olhos dos que ficaram, mas isto suscitava outra questão. De que valeria o juízo dos que ficaram para quem já foi?
Em parte eram estes problemas que lhe ocorriam. Uma vez dito que a morte era a única certeza, sabia que poucas coisas na vida podiam ser controladas e imaginava que o seu oposto talvez fosse a única capaz de ser premeditada se levadas em consideração as variáveis existentes. Ao fim e ao cabo, se todos nos extinguiremos enquanto organismos e o nosso livre arbítrio não passa de uma ilusão moderna, talvez o suicídio possa ser justificado racionalmente. Uma última e única verdadeira escolha premeditada.
Porém sempre haveria os imponderáveis, capazes de alterar o sentido da morte. Teria que minimizá-los ao máximo a fim de evitar interpretações errôneas sobre seu destino. Seria uma escolha filosófica e como tal ficaria registrada em diversos lugares para garantir seu verdadeiro significado. Resoluto e até mesmo excitado em suas convicções passou a escrever seu manuscrito post mortem, justificando suas escolhas e combatendo detalhadamente qualquer tentativa de determinação sobre sua decisão.
Foi um trabalho árduo que levou mais tempo do que o esperado, mas por fim foi impresso e seria destinado a três instituições diferentes no dia anterior ao seu suicídio, a uma universidade, a um jornal e a delegacia local. Por questões pessoais escolheu se atirar do topo de um prédio. Era um clássico, mas já estava em desuso há algum tempo. Cairia, portando seu manuscrito, sobre um terreno baldio ao lado do prédio escolhido, para evitar ao máximo possível qualquer tipo de dano a outrem.
Na noite anterior ao dia escolhido dormiu um sono agitado, repleto de sonhos estranhos sobre uma queda sem fim. Mas nada disso o abalou, acordou disposto e resoluto a cumprir o seu destino, ou melhor, sua escolha. Seguiu seu ritual matinal acompanhado de café e jornal e saiu em direção ao prédio que havia escolhido, era há algumas quadras de sua casa, estava abandonado e não haveria problema algum para acessar o topo.
Caminhava tranqüilo pela rua quando dobrou aquela que seria sua ultima esquina e passou a avistar ao longe o espaço vazio onde teria que mergulhar. Suas pernas fraquejaram e seu sangue pareceu-lhe fugir da cabeça, sentiu-se tonto por um instante. Uma vertigem temporária que logo foi superada. Adentrou no prédio sem maiores dificuldades e passou a subir vagarosamente as escadas. Após longos minutos estava no terraço de frente para o abismo. Lembrou-se do sonho da noite anterior e voltou a estremecer, um sentimento estranho lhe percorreu a espinha, algo na sua intuição lhe dizia que não iria chegar até ali, que algo inesperado ocorreria e inverteria o rumo da história. Era um bom roteiro para ser seguido, mas não era o planejado.
No fundo, contava com um fator não premeditado, não acreditava no seu livre arbítrio e na sua teoria. Mas para efeitos práticos estava certo, ou pelo ao menos em consentimento com o universo, e mergulhou rumo a sua única e infinita certeza.

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