Drink Cristal era o nome da boca. Soava como nome de zona de beira de estrada, o que de fato era, mas com o particular agravante de ser praticamente dentro de um arrozal. Conforme o costume, tinha uma luz vermelha sobre sua porta de entrada, que denunciava ou indicava aos viajantes a verdadeira finalidade do local. Há muito que eu hesitava em cruzar aquele umbral, se é que zona tem disso. Porém aquela noite tinha sido demasiado funesta para ir direto para a casa.
Sempre imaginara a perda do emprego como um fato ordinário a que todos estamos sujeitos, mais ou menos como a fatalidade da morte. Um evento objetivo causal, possível dentro da normalidade dos acontecimentos históricos de um homem. Porém quando aconteceu comigo, pareceu-me a maior das tragédias humanas. Estava numa situação onde o trabalho era minha única conexão com a realidade, não que eu o adorasse como exclusiva finalidade de vida, mas era o que havia me restado.
Acredito que exista uma fina ironia universal, é a mais cabal prova da existência de uma forma de inteligência que rege o mundo. Deus não é uma criança com uma lupa, é um roteirista com senso de humor duvidoso. Afirmo isto com base no encadeamento lógico que me deixou na porta deste puteiro maldito. Larguei o mestrado por causa dela e das crianças – pouco tempo, pouca grana, muita encheção – ela me largou por causa de um doutor em dermatologia (não sabia que existia doutorado em pomadas) e perdi o emprego devido ao estado calamitoso que me encontrava sem minha estrutura familiar.
Elaborei esta teoria enquanto voltava da empresa após a dispensa, dirigia amargurado, com um vazio no estômago e com a garganta trancada. Totalmente perdido, não sabia o que fazer ou para onde ir. Um misto de rancor e de indiferença brigavam dentro de mim no preciso momento em que vislumbrei ao longe a luz vermelha. Uma decisão ao menos eu havia tomado.
O lugar era pior do que eu imaginava, menor e mais sujo, parecia uma sala de espera do Inferno. A disposição das cadeiras, a posição do bar ao fundo e uma porta fechada passando o balcão, davam ao ambiente esta diabólica impressão. No momento que adentrei o lugar todas as atenções se voltaram para mim, constrangido, não consegui olhar para o rosto das poucas pessoas do local e caminhei automaticamente até o bar. Atrás do balcão a garçonete parecia uma recepcionista de consultório em trajes inapropriados para a função. Como isso? De coque, óculos e cara de tédio.
Antes que pudesse pedir uma cerveja, a garota levantou os olhos e perguntou-me o nome. Espantado, olhei ao redor com mais calma e percebi que apesar da música e da iluminação típica de zona, as poucas garotas que havia estavam sentadas lendo revistas, assim como os homens do lugar. Um calafrio me subiu pela espinha até a nuca. Olhei para a garota e respondi entre engasgos. Ela consultou um caderno e rebateu após alguns instantes – Seu nome não está na lista de hoje.
Neste instante, a porta do fundo se abriu fazendo um barulho medonho, um bafo quente invadiu a sala e a mulher mais linda que já havia visto na minha vida surgiu e chamou por um nome que não me recordo. As pessoas sentadas se entreolharam, um sujeito se levantou e caminhou até a porta, aquela musa macabra, ruiva e flamejante, acompanhou o coitado até a porta com uma volúpia sem precedentes.
Boquiaberto, virei para o balcão, a garçonete/recepcionista olhou-me por cima de seus óculos com uma terrível malícia e disse que poderia me encaixar num horário se eu assim desejasse. Apavorado com a possibilidade de cruzar aquela porta, gaguejei algo incompreensível, e resoluto me pus em retirada da pocilga. Antes de atravessar a porta, porém, me virei e contemplei aquele triste ambiente. Foi o meu fim. Soltei um longo suspiro, voltei ao balcão e marquei a minha hora.


Não que eu seja experiente com estes tipos de "bocas",mas do jeito como tu escreveu,até parece os famosos "Inferninhos" do centro de Porto Alegre!
ResponderExcluirGrande abraço,muito bom!