segunda-feira, 12 de outubro de 2015

De Volta ao Maelström

Começou com um leve torvelinho, sem qualquer aviso prévio, irrompeu na superfície tediosa da água, perturbando a calmaria do açude. Divagava entre pensamentos cotidianos quando o pequeno vórtex atraiu minha atenção, intrigado pelo distúrbio, acompanhei seus ciclos concêntricos enquanto deixava de lado anzóis e o emaranhado do espinhel. Juncos, folhas soltas e pedaços de cortiça passaram a circular ao seu redor.
Gradualmente sua amplitude aumentava e mais coisas eram envolvidas em sua espiral, ao passo que eu observava assombrado seu movimento hipnótico. De maneira intuitiva percebia o risco que corria, grandes doses de adrenalina na corrente sanguínea me diziam para remar na direção contrária, afastar-me daquele ímpeto crescente, porém eu estava por demais encantado com sua beleza para pegar nos remos.
Somente mais tarde compreendi que a força de atração daquele fenômeno estendia-se além das coisas materiais, pois naquela hora nada mais importava, tudo, inclusive minha atenção, movia-se em sincronia e rumava para o mesmo fim. E antes que eu pudesse perceber o barco começou a percorrer lentamente a fronteira mais externa do redemoinho, estirando as linhas que estavam n'água e produzindo um pequeno rastro de espuma circular. Não havia mais nada que eu pudesse fazer, estava integrado ao seu giro inexorável.
Nesse instante uma centelha de arrependimento acendeu, talvez, se eu tivesse me afastado quando podia teria conseguido escapar de seu ímpeto, mas a proximidade com aquela força inexplicável logo suplantou esse sentimento. Observava encantado o ritmo crescente dos giros, enquanto o barco rumava em direção ao seu núcleo, acelerando e inclinando-se a cada volta, formando um imenso funil pardo no antes plácido açude. Conforme me aproximava do centro, um ruído pavoroso que brotava de suas entranhas intensificava-se, jamais esquecerei aquele som medonho que parecia subir aos céus e ser sugado para o seu interior ao mesmo tempo.
Agarrado as bordas do barco, navegava numa corrida inclinada sobre a parede mais interna do funil quando vislumbrei a essência do redemoinho. Foi como olhar no olho de uma força que nos transcende e engloba, não uma força consciente e ordenada, mas uma força elementar inconcebível, terrível demais, bela demais para resistir. Os últimos giros que recordo foram tão rápidos que mal consegui me manter dentro do barco, depois disso uma torrente barrenta inundou tudo a minha volta. O ruído foi abafado e o ar suprimido, prendi a respiração e debati-me em vão enquanto era arremessado em todas as direções.
Quando acordei, custei a acreditar em meus olhos: estava jogado entre juncos e aguapés as margens de um açude vizinho, cerca de 3 km abaixo. Ainda incrédulo, voltei ao açude superior e busquei por algum indício do redemoinho, mas não havia nenhum sinal dele, do barco ou das minhas linhas, tudo havia sido tragado e consumido. Sentei sobre meus calcanhares e perscrutei longamente a superfície lisa da água. Da mesma forma como surgiu, desapareceu, deixando para trás apenas um misto de nostalgia, temor e fascínio.


domingo, 23 de agosto de 2015

Semana

 É sempre a mesma coisa, logo após sua partida começa o árduo trabalho de desencantar-me. Não é fácil, cada minuto de sublime hesitação torna a tarefa ainda mais dolorosa. É preciso descer bruscamente das nuvens ao áspero cotidiano para estancar o sentimento e evitar maiores danos. O ideal seria nem sequer vê-la partir, despedir-se no automático e retomar as atividades do dia, mas não consigo deixar de acompanhá-la até a porta, deter-me um segundo junto a ela, beijar-lhe a face e observá-la afastar-se pela rua.
Um, dois... e já foi. Minha vontade é eternizar o momento, recuperar toda a cena, estendendo cada detalhe ao máximo. Mas é preciso deixá-la partir, interditar todos os possíveis significados suspensos e prender-se a imediata realidade, na expectativa de assim preencher o vazio deixado pela sua ausência e impedir que o sentimento deite raízes, espalhando-se pela minha memória.
Esses esforços têm lá seus resultados, não no primeiro dia, em que nada é capaz de afastar sua imagem de minha mente, mas com o passar do tempo ela vai perdendo intensidade. No dia seguinte ainda recordo em detalhes seu rosto e de frases ditas enquanto sorria, sentenças aparentemente comuns, mas que naquela boca ressoam e perduram no tempo. O terceiro dia é particularmente complicado, sua lembrança é menos constante, porém o simples aroma de um café recém passado ou a referência a uma despedida qualquer bastam para evocá-la e fazer com que eu lamente sua ausência.
O quarto dia transcorre de maneira menos melancólica. Resignado, foco todas minhas atenções no trabalho, transformo-me em uma máquina que escreve ou num punho que calcula e evito assim todo tipo de suspiros ou desalentos. No quinto dia estou suficientemente distante de sua influência e não me ocorrem questões sobre onde poderia estar, ou o que poderíamos fazer caso estivéssemos juntos naquele momento. Por sua vez o sexto dia é o único em que passo sem sua lembrança, pois, no sétimo, ao organizar as coisas para o dia seguinte, recordo que a verei novamente.
E lembro do seu sorriso, dos seus gestos e dos seus efeitos sobre mim, e ainda assim anseio encontrá-la outra vez. Estar em sua companhia de novo para poder caminhar com ela até a porta, trocar algumas palavras desimportantes que não esquecerei facilmente, hesitar por um segundo antes de beijar sua face e observá-la novamente enquanto afasta-se pela rua...

domingo, 19 de julho de 2015

Rainha Branca

Alçada ao topo por algum acontecimento inexplicável, a Rainha Branca julga a todos do alto de sua torre de marfim. Atormentada pela solitária condição, persuade-se da sua virtude apontando para os defeitos dos outros. Diante da vulgaridade de uma falha pública seus mesquinhos desvios privados são esquecidos, sua moral enrije-se e sua conduta torna-se imaculada. Um abismo moral abre-se entre a Rainha e os ímpios, permitindo-lhe o mais implacável dos julgamentos. Pois lá de cima todos lhe parecem pequenos, ordinários e comezinhos, sujeitos às sentenças embasadas na sua inalcançável moralidade. Não há quem escape ao seu crivo. E a cada juízo estabelecido, a cada parecer formulado, sua posição eleva-se ainda mais, tornando os de baixo ainda mais insignificantes face a sua crescente altivez. A ponto de a Rainha não conseguir ver nada além de pequenos pontos pretos que a cercam num distante tabuleiro.


terça-feira, 31 de março de 2015

De Volta ao Mar

O mar é belo e terrível, essa sentença ecoava na minha mente flutuante quando avistei, de rabo de olho, três cabeças sendo arrastadas por uma forte corrente para dentro do oceano. Creio nunca ter agido com tamanha determinação na minha vida, pois no instante seguinte deitei sobre a prancha e me pus a remar naquela direção o mais rápido possível. Na cruzada gritei para outro surfista que estava próximo sem esperar por sua reação.
Remei cerca de 100 metros até alcançar o primeiro dos náufragos, um senhor que boiava com relativa tranquilidade. Sem pensar muito a respeito prossegui remando na direção de dois garotos que se debatiam e afundavam para em seguida emergirem novamente. Porém, quando consegui alcançá-los, ambos haviam desaparecido em meio aquela água escura e turbulenta. Num piscar de olhos eles haviam sido engolidos pelo mar.
Alguns minutos antes eu estava remando rumo à última arrebentação, atravessando colunas incessantes de espuma em busca de uma condição menos instável. Porém, o mar estava tremendamente agitado e eu teria que remar muito para chegar lá fora. Em meio aquela ressaca sentei sobre a prancha e ponderei a respeito do que fazer. Estava sozinho, longe da minha melhor condição física e, o mais surpreendente para mim, com medo.
Nunca antes havia desistido de entrar sem ao menos tentar, sempre respeitei meus limites face às condições, mas nunca havia desistido de antemão. Contudo, dessa vez algo me dizia que não valia a pena o esforço, que era melhor deixar assim. Diante destas considerações inspirei fundo, um tanto quanto decepcionado comigo mesmo, e retornei a balançante arrebentação intermediária.
Naquele momento questionava o que teria acontecido comigo. Quem era aquele indivíduo hesitante sentado sobre aquela tábua dentro d'água? Afinal, uma parte relevante da minha formação se deu através da relação com o mar. Desde moleque apreendi a admirá-lo e respeitá-lo como uma expressão da natureza que não se submete a nenhum credo ou decreto humano, uma força inesgotável de beleza e mistério, cujo o acesso e permanência sempre dependeu de um desejo de comunhão e de uma espécie de concessão.
Por isso, aos meus olhos, aquela desistência antecipada assemelhava-se a um receio em pedir permissão, como se fossemos estranhos um ao outro. Eram esses sentimentos que me envergonhavam e ocupavam quando avistei aquelas pessoas à deriva na correnteza.
Mas estranhos são os desígnios que nos levam a certos lugares em determinados momentos. Uma tentativa a mais e eu provavelmente não estaria ali naquele instante, buscando por qualquer indício dos dois garotos submersos. Porém, naquela hora esta era a última de minhas preocupações, procurava desesperadamente um sinal em meio aquela agitação quando me deparei com um braço submerso debatendo-se. Imediatamente puxei-o para cima da prancha.
Nunca esquecerei o pavor nos olhos escancarados, sob a água, daquele garoto. Agarrado à prancha gritava por socorro enquanto eu buscava por seu companheiro, que mais tarde descobri ser seu irmão mais velho. Após alguns instantes de uma procura nervosa, os salva-vidas finalmente nos alcançaram e resgataram o senhor, agora sobre a prancha do outro surfista, e o garoto. Ainda buscamos pelo garoto desaparecido alguns minutos antes de retornarmos à beira da praia.
Enquanto remava de volta fui atingido por uma súbita compreensão: o outro garoto estava morto. Provavelmente havia engolido muita água e afundado, afogando-se. Os dois estavam lado a lado no momento em que os avistei, ou seja, por muito pouco não o alcanço. Essas coisas, um tanto quanto óbvias, iam desenrolando-se na minha mente e afetando-me imensamente, tanto que no meio do trajeto a constatação da velocidade com que aquela vida foi abreviada, somada à minha proximidade e impotência diante da situação, tornou-se desesperadora.
Ao pisar na areia sentia uma angústia imensa, como se a nossa fragilidade fosse desnudada frente a toda grandeza e potência do oceano. Nesse meio tempo um grupo de pessoas já havia se formado em volta dos resgatados, ameacei uma aproximação, mas ao perceber uma moça aos prantos, de forma inconsolável, não encontrei coragem para continuar e mudei de direção. O sal das lágrimas misturava-se ao sal da areia enquanto caminhava sob alguns olhares curiosos.
Mas somente em braços amados consegui chorar de verdade, desabei e chorei sem saber ao certo porquê, pois as únicas palavras que me ocorriam naquele momento eram "belo" e "terrível". Na noite seguinte tive dificuldades para dormir, o ruído contínuo das ondas ao fundo impedia-me de evitar pensamentos sobre os acontecimentos da véspera. Porém, ao cabo de um longo tempo insone adormeci.
Ao despertar pela manhã, caminhei até a praia como de costume e me deparei com uma linda paisagem: o mar, claro e sereno, rolava mansamente suas ondas sobre a areia, convidando-me para um outro banho.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Sobre a natureza do medo

E se, numa noite qualquer, todos os segredos primordiais lhe fossem revelados. Sussurrados no seu ouvido por uma voz impassível, tão antiga e profunda quanto o próprio tempo. E, ao despertar do torpor infundido por essa revelação, tudo lhe parecesse envolto em uma névoa de incerteza e mistério, como se constituído da matéria onírica de um sonho desperto. O que você faria? Não repeliria esses absurdos em busca de uma explicação racional para a situação?
Foi precisamente essa minha conduta ao levantar da rede em que cochilava. Numa tentativa de afastar aqueles pensamentos perturbadores e retornar a realidade, sacudi a cabeça, esfreguei os olhos e espreguicei-me. Em seguida olhei ao redor e contemplei a noite que se iniciava. Aos poucos a memória voltou e pude me situar naquele ambiente estranho.
Havia dirigido o dia inteiro até o remoto balneário uruguaio em que me encontrava. Dei entrada numa pequena cabana ao lado de um cabo, desci minhas coisas do carro e deitei na rede para apreciar o fim de tarde. Essas foram minhas últimas lembranças antes daquela voz. Não sei ao certo por quanto tempo a ouvi. No começo assemelhava-se ao ruído monótono do mar, depois foi distinguindo-se gradativamente e passou a preencher todo espectro sonoro, até não haver mais nada além do seu tom impassível.
Estremeci ao recordá-la, mirei a praia escura que estendia-se a minha frente e voltei à cabana. Apressei-me em acender uma lâmpada, aquele firmamento interminável pesava como nunca sobre mim. Aos poucos a confusão foi dissipando-se, porém as palavras sussurradas ainda ecoavam, tornando-se mais claras e assustadoras.
Um enredo absurdo lentamente ganhou forma. Tudo girava entorno de uma dualidade fundamental, um equilíbrio preciso entre a luz e a escuridão, mas não havia nenhuma moral humana implicada nessa divisão. Apenas duas “forças” opostas que permitiam a existência de todas as formas de vida. Essa referência foi sucedida pela imagem de uma miríade de criaturas grotescas e incompreensíveis, habitantes de profundezas e fendas desconhecidas, seres tão bizarros quanto assustadores.
Porém, ressoava a voz na minha cabeça, esse equilíbrio vem sendo constantemente tensionado pela luz artificialmente gerada. Empurrando a escuridão para regiões mais remotas e diminutas, onde essas criaturas espremem-se e confabulam, aguardando pelo momento certo de retomar seus espaços. Nesse instante a imagem de uma onda negra, habitada por nefastas criaturas, invadiu minha mente, uma imensidão escura alastrou-se sobre tudo. Sombras moviam-se como tentáculos que partiam de todos os cantos e sobrepunham-se a tudo que alcançavam.
Em meio a essas terríveis recordações o vento que soprava do mar invadiu a cabana e balançou a luminária suspensa sobre a mesa. Seu movimento fez com que as sombras, antes imóveis, se projetassem e ganhassem vida. Um arrepio gelado percorreu minha espinha, as sombras passaram a mover-se e estenderem-se para muito além de suas formas originárias, como se meus pensamentos projetassem sombras sob a luz balançante. Apavorado com aqueles tentáculos negros que ondulavam em minha direção, corri para rua.
O ar da noite estava carregado e as estrelas, mais opacas do que nunca, emitiam um brilho pálido que parecia quase não chegar. Olhei ao longe na direção da cabana central e avistei meu carro, porém, no instante seguinte, sob o peso daquela noite espectral, percebi ter cometido um terrível engano. Aquelas parcas luzes artificiais na cabana eram a única coisa que me mantinham a salvo dos tentáculos na escuridão, pois ao mirar o horizonte em busca do carro percebi uma estrela pálida que apagou-se.
Enquanto caminhava, uma a uma, as estrelas apagavam-se e a escuridão se adensava. Após alguns passos na direção que imaginava correta a escuridão tornou-se completa. O ruído do mar parecia vir de todos os lados e assemelhava-se ao som de entranhas. Atormentado pelo horror, tropecei em algo indescritível, o solo inteiro parecia mover-se como algo vivo e coisas caminhavam sobre mim sem que eu pudesse levantar-me. Desesperado, consegui correr alguns metros antes de torcer o pé e cair novamente.
Naquela hora percebi que não temia qualquer mal a minha saúde ou minha morte, já esperava por ela, mas temia pelo inconcebível, pelo absurdo que representava toda aquela situação. Um medo primordial daquilo que não somos capazes de conceber ou aceitar como real. Diante desse horror me arrastei e debati alguns minutos antes de perder completamente a consciência.
Quando acordei na manhã seguinte, envolto em areia e sargaço, tive a certeza de ter contemplado algo além da compreensão humana. Ninguém acreditaria em uma palavra do meu relato absurdo, me tomariam por bêbado ou paranoico. E não havia como recriminá-los por isso, tamanha a insensatez dessa história. Assim iam meus pensamentos na beira da praia naquela manhã, até o momento em que percebi um segundo sol negro alvorecendo por trás da linha do oceano...