quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Exceções à Regra

Num raro momento fora da rotina a conheci, na oportunidade me esforcei por apresentar o melhor de mim e disfarçar o pior. Pois ela exalava uma inocência há muito esquecida em minha vida e temi assustá-la com meus desvios de caráter. Seus olhos doces e sorriso acanhado continham um frescor capaz de envergonhar o mais devasso dos lascivos, inibindo assim meu lado mais sórdido. Por isso decidi manter-me tranquilo, estava satisfeito em conhecê-la e desfrutar de sua companhia.
Sabendo o final da história há quem me acuse de astuto e dissimulado por essa atitude inicial, mas juro que procedi sem segundas intenções. Quer dizer, pelo menos nesse começo de conversa. Mas acontece que dois jogam este jogo e talvez minha primeira leitura do tabuleiro estivesse equivocada, pois me vi, após uma longa conversa íntima, enredado em uma teia de sedução onde cada movimento me atraia em sua direção.
Percebi um tanto inseguro a situação e decidi abandonar a defensiva, suspendendo temporariamente os pudores que me prendiam. Ainda meio bobo com o encantamento, procurei decifrar aquela bela figura sentada ao meu lado. Até onde minha vista alcançava usava um vestido estampado com flores coloridas e sapatilhas escuras, braços esguios e lindas pernas corriam para fora da veste. Uma leve penugem cobria sua pele morena e eriçava-se deliciosamente com a brisa.
Por via das dúvidas movi-me com cautela, contornando fronteiras e cotejando limites. No interstício de nós dois havia uma zona ambígua, relativamente segura e confortável, mas potencialmente perigosa. E ali habitamos durante algum tempo. Porém esse frágil equilíbrio caiu por terra quando ela expressou de forma despretensiosa seu afeto por mim. Dali em diante aquela condição tornou-se insustentável, a sorte foi lançada e o próximo movimento era meu.
A esta altura eu já havia abdicado do controle da situação, porém notava certa perturbação em suas maneiras. Desviava o olhar com frequência e parecia não suportar os momentos de silêncio que pesavam entre nós. Passei então a fomentar essa tensão rumo a uma ruptura. Ainda havia uma ternura no ar, mas o desejo começava ganhar terreno e manifestar-se nos esparsos contatos que ocorriam e lhe davam contida vazão.
Acariciei de leve seu braço enquanto falava e quase pude ouvir seu coração acelerar, cada toque meu era correspondido com uma onda de energia que fluía em minha direção e ampliava minha vontade de sentir sua pele. A tensão aproximava-se do ápice. Meio sem pensar, ajeitei uma mecha que pendia sobre seu rosto e a encarei, passei os dedos por trás de sua orelha e os desci até a parte posterior de seu pescoço. Não havia mais volta. Senti os pelos de sua nuca arrepiarem-se e inclinei o rosto em sua direção.
Todavia, não há nada mais imprevisível nesta realidade cósmica do que a contraparte feminina do gênero humano. Não que haja algum demérito nisso, pelo contrário, esse é um dos seus mais importantes atrativos e fonte de encanto. Porém, essa característica tende a frustrar algumas expectativas de seus pares, como a minha naquele momento.
Sua negativa foi a mais gentil e carinhosa possível para aquele contexto, mas confesso que não o suficiente para convencer-me. Na despedida, pensei eu, a despedida é infalível. Após esse auto estímulo retomei a naturalidade forçada e prosseguimos pelas bordas. Seus olhos pareciam suplicar para que eu não desistisse e seu corpo ansiava pelo toque, encontros ocasionais ocorriam com uma frequência intencional e duravam além do esperado.
Tudo se encaminhava para o clímax da despedida, inclusive nós caminhávamos lado a lado rumo ao ponto em que nos separaríamos. No momento esperado peguei na sua mão e a encarei de novo, ela sorriu longamente um sorriso tímido, baixou os olhos e beijou-me a face. Segurei-a contra mim buscando reter o máximo possível daquele momento, até ela se esvair por completo pelos meus braços. Li todos os sinais emitidos e fiz o máximo possível para conquistá-la, porém, apesar do inconfundível gosto da derrota na boca, fiquei com a impressão de que nem sempre o desfecho é o mais importante.

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Tardes de Chuva

Dias de chuva sempre tendem a melancolia. Não há nada mais propício para refletirmos sobre nossas vidas do que uma árvore balançando ao vento vista através de uma janela embaçada. O mundo molhado lá fora parece repercutir nossas angustias interiores, potencializando-as e nos convidando à introspecção. A umidade no ar adensa tudo, o vapor do chá quente que se desprende lentamente da borda da xícara, a fumaça do tabaco que se esvai pela fresta da vidraça, e até mesmo a existência, essa inefável presença, parece pesar mais sobre nossos ombros.

Há quem amaldiçoe esta condição, lamentando o isolamento compulsório e o marasmo envolvidos. Porém, para aqueles como eu, que apreciam o ruído da gota que cai e da água que corre, não há nada melhor para revisitar-se. Com certa tristeza, é verdade, pois nem tudo são flores nos meandros da alma, mas com uma dedicação impensável em outras situações.

Motivado pela monotonia úmida, esse convite à reflexão sugere um vago paralelo com a prática espeleológica. Em que bravos indivíduos, impelidos pelo amor ao conhecimento científico ou a beleza natural, exploram o interior desconhecido das cavernas. Essa comparação justifica-se, pois vasta e imprevisível como as cavernas é alma humana, com suas amplas galerias banhadas pela luz externa e seus infinitos recônditos obscuros.

E como tal, é necessária certa prática para não cair e ferir-se nas suas armadilhas interiores. Onde é preciso atentar ao caminho percorrido, evitando fendas intransponíveis e percursos labirínticos, para poder retornar desta jornada. Portanto, há em ambos os casos caminhos que devem ser evitados quando se encontra debilitado.

Perseguir a linha de um antigo amor, por exemplo, pode ser algo extremamente perigoso quando ainda não se está plenamente recuperado. Porém, não há nada mais motivador quando a chuva larga e contínua escorre pelo vidro. E foi justamente assim que procedi naquela tarde. Tomado pela nostalgia do contexto, revisitei os momentos mais belos, os espaços mais amplos e iluminados de minha história com ela.

A revi saltar sobre poças noturnas, sorrindo no reflexo das águas que se rompiam ao seu passo e lembrei de quando dividíamos o espaço sob a marquise, estreitando nossos corpos contra a parede. E perguntei-me como foi possível desviar de forma tão brusca do trajeto desejado. Insisti na questão e o refiz, tropeçando nas mesmas pedras e escorregando nas mesmas brechas.

Busquei repensar escolhas passadas e trilhar caminhos alternativos, mas me deparei sempre com os mesmos becos. Insisti tanto no esforço que me perdi em meio aquelas galerias sem fim. Após algum tempo vagando ainda escutava o canto tímido dos pássaros e a chuva batendo lá fora, mas não conseguia mais voltar. Da mesma forma que observava a árvore por entre a janela embaçada, passei a enxergar o mundo a minha frente, o chá que esfriava sobre a mesa e o tempo que se esvaía sem que eu conseguisse retornar.

Percebi minha família e amigos tentando interagir, mas me tornei incapaz de responder. A vista tornou-se cada vez menos nítida, até a perda completa do contato externo. Resignado a minha sorte, só me restou vagar por entre este complexo de brechas, fendas e salões da mente, repisando trajetos ao som de um gotejar constante, que me parece ecoar para sempre, de uma única e originária gota.

domingo, 31 de agosto de 2014

Amores do Ofício

Não consigo lembrar de como a conheci, creio que foi ganhando contornos e relevância conforme a descobria em detalhes. A cada conversa, sorriso e reticência ela conquistava mais espaço em minha mente, sempre versava sobre temas interessantes e possuía opiniões originais sobre quase todos assuntos. Sua influência sobre mim foi muito intensa, ao passo que em dois meses eu estava profundamente dependente daquela presença, e nada mais me interessava além de sua companhia...

Ela insiste em dizer que é só pele. Percorro todo seu corpo com dedos, olhos e alma. Mas ela diz que é só pele. Anseio por seus lábios, cheiro e companhia. E ela repete que entre nós só há pele. Penso que deve ser alguma defesa, um tipo de barreira para manter-se distante. Mas não consigo aceitar esta restrição que limita meus sentimentos. Transforma e objetiva a relação, reduzindo toda a contradição a uma simples questão de pele...

Sardas, sinais e mais sardas espalhavam-se pelo seu corpo curvilíneo. Naquela meia luz, deitada nua sobre o sofá estava a única garota que considerava capaz de amar pela eternidade. No fundo sabia não ser possível amar alguém com essa intensidade por tanto tempo. Porém havia bebido o suficiente para ignorar tais argumentos. Naquele instante, admirando aquela linda garota a minha frente, me permiti divagar e sonhar o mais ingênuo dos sonhos. Sonhei que podia ser ela quem preencheria todas minhas expectativas, ainda que não estabelecidas e por vezes contraditórias...

No princípio amei toda sua espontaneidade, movida por um espírito de viver imprevisível e incontrolável, capaz de me encantar todos os dias. Seu olhar doce escondia um desafio quase que permanente, instigando-me sempre a coisas novas e inesperadas. Porém era instável. Sua mente ativa oscilava da felicidade radiante ao mais soturno dos humores em minutos. Deixando-me desnorteado com a transformação. Por vezes, me controlava para não abandoná-la a seu próprio desequilíbrio. Um esforço pequeno comparado ao prazer de acordar ao seu lado nas manhãs ensolaradas...

Tal qual o entardecer de um outono qualquer ela chegou lentamente. Quase imperceptível expandiu-se em silêncio. Primeiro surgiu como um palpite, uma intuição incerta sobre a qual apenas adivinhava a proximidade. Mas seu processo foi gradual, logo me distrai e a esqueci, para na sequência constatá-la em sua totalidade. Não havia mais espaço para a dúvida. Anoiteceu de fato e a rotina tomou conta da relação. Mas o que fazer? Antevi a distância, intui sua presença, mas assim como o ocaso, nada pude fazer para evitá-la...

Quando partiu percebi o quanto a amava, não apenas pelo vazio presente em cada objeto e peça da casa, mas pela ausência do propósito de viver que me assolou. Uma cumplicidade como a nossa não deixa margens para recomeços tardios. Me restou de consolo a expectativa de unir-me novamente a ela. Mas como não tenho coragem para abreviar a espera, aguardo. E enquanto aguardo recordo, do que não lembro... invento. 

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Não-Lugares

Desde que publiquei meu último livro, único que escrevi sob demanda e observei as recomendações do editor, tenho frequentado muitos aeroportos e hotéis. Por sugestão antropológica chamo-os de não-lugares, pois são similares entre si em qualquer outro lugar do mundo e por isso desprovidos de identidades. Ambientes homogeneizados e pasteurizados da vida moderna que transmitem uma impressão amorfa, confundindo-se em nossa memória.
Não posso reclamar, pois, embora não seja exatamente como planejava, finalmente estou obtendo algum reconhecimento pelo meu trabalho. Porém, nos últimos dias esta rotina de divulgação tornou-se extremamente tediosa e cansativa. Tanto que por vezes não tenho certeza se estou indo ou voltando, outras, acordo perdido no meio da noite buscando pelo banheiro na porta do armário.
Com exceção de pequenas diferenças, alguma especificidade da culinária local no café da manhã, um clima mais seco ou um sotaque mais acentuado, tudo se passa como estivesse repetindo-se indefinidamente. Às vezes, ao falar do meu próprio livro, tenho a impressão de tratar sobre outras obras do mesmo gênero, escritas por outros autores que utilizaram as mesmas técnicas, a mesma receita de bolo. Como se tivéssemos todos presos à mesma rotina de não-lugares.
Durante uma destas viagens publicitárias decidi aproveitar a curta distância entre o hotel e a livraria em que faria uma palestra para fugir um pouco deste roteiro enfadonho. Optei por uma leve caminhada pelo bairro em vez de chamar um táxi como de costume. Era o bairro boêmio da cidade, repleto de casas no estilo português, cujas fachadas estendiam-se lado a lado diretamente sobre as calçadas, transformadas em bares, pubs, brechós, restaurantes, barbearias e qualquer outra atividade comercial imaginável. Percorri admirado aquela unidade formal de estruturas contrastadas pela diversidade de conteúdos e cores que emprestavam-lhes certo charme, apesar do constante cheiro de urina.
A frente de uma fachada, porém, detive-me ao perceber um gato deitado sobre o umbral da porta de entrada. Seu rabo esguio balançava de um lado para outro enquanto me encarava com a indiferença típica dos gatos. Reparei melhor na casa, tábuas cruzadas na frente da porta indicavam que estava abandonada, mas algo ainda mais incomum chamou minha atenção: por entre as folhas quebradas da única janela, um galho de árvore atravessava a fachada.
Uma árvore dentro da casa, pensei enquanto o gato me acompanhava com uma expressão entediada de quem ouviu meus pensamentos e os considerou estúpidos. Diante de tamanha censura fui averiguar o interior da casa pela fenda na janela. Para minha surpresa não havia casa, apenas uma fachada remanescente que guardava um pátio abandonado. No interior, além da árvore, via-se uma grande variedade de hortaliças e plantas crescendo livremente, mais ao centro do terreno havia algo que parecia uma mesa e um conjunto de cadeiras de jardim muito velhas.
Soltei-me da janela um tanto assustado com aquela visão, conforme observava os detalhes daquele pátio abandonado uma imagem muito familiar foi formando-se na minha mente. Não fazia o menor sentido, mas aquela disposição assemelhava-se com o jardim da minha infância, o jardim da antiga casa de meus avôs. Confuso, parei um instante para certificar-me em que cidade estava. Porém não era esse o caso, meus avós nunca tinham saído de sua cidade natal.
Convencia-me de que não passava de uma imensa coincidência quando o gato saltou de seu umbral para a minha frente. Encarou-me novamente e com outro pulo sumiu por entre a fresta da janela em direção ao jardim perdido. Por um momento tudo parou e ali estava eu, a Alice diante da toca do coelho, hesitando frente ao desconhecido e temendo por algo que buscava. Na pior das hipóteses escrevo algo sobre isso, argumentei para mim mesmo enquanto forçava a folha da janela.  
  Já no interior do jardim guarnecido pela antiga fachada, uma sensação de arrependimento brotou no meu estômago. A impressão de abandono era completa, ninguém parecia visitar aquele jardim há décadas. Ainda assim uma familiaridade assustadora pairava sobre o local, ruídos de outrora soavam aos meus ouvidos. Risos, conversas, a água caindo sobre as hortaliças, sons de outros tempos que ainda ecoavam entre aquelas paredes.
Perplexo, mas obstinado, caminhei em direção a mesa de jardim onde o famigerado gato estava sentado tal qual uma divindade egípcia. Solicitei sua licença e puxei uma das cadeiras para sentar-me, elas eram precisamente como eu recordava, feitas de ferro torcido pintado de branco e com umas almofadas amarradas sobre o assento. Ele assentiu com a cabeça e tornou a olhar para o além, absorto em pensamentos.
Ao sentar-me percebi, em meio a relva que crescia, uma série de peças de um jogo de chá caídas sobre o chão próximas à mesa. Juntei-as uma a uma enquanto reconhecia seus detalhes azuis pintados à mão, como nas xícaras de minha avó. Organizei-as sobre a mesa, dispondo-as tal qual um retrato antigo que guardo na memória e abaixei-me para adequar o ângulo. Um cheiro doce e marcante de chá de funcho tocou minhas narinas.
A possibilidade de estar sonhando me ocorreu, pois além da singularidade da situação, tudo a minha volta parecia único e repleto de significados. Pensei em beliscar-me para verificar, mas temi acordar em um hotel qualquer com um imenso vazio no peito, ou pior, em meio a uma palestra, diante de uma pergunta sem sentido sobre o meu livro estúpido.
Perante este temor abandonei a ideia, servi-me uma xícara de chá e ofereci outra ao gato, que recusou-a com polidez. Inspirei profundamente aquele ar bucólico e desfrutei sem pressa meu chá enquanto anotava algumas ideias que me ocorriam para um romance, sem ter certeza se conseguiria usá-las.


quinta-feira, 26 de junho de 2014

Eterno Retorno

“E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: 'Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes'” (Nietzsche, A Gaia Ciência).

O sol vespertino aquecia e embalava-os, ela acariciava gentilmente sua barba, alinhando sem pressa os desgrenhados pelos de sua face. Ele limitava-se a sorrir e contemplá-la. O ônibus fluía por rodovias anônimas, uma paisagem quase imutável desfilava tediosamente pelas grandes janelas do coletivo. Todos nas poltronas ao redor dormiam, ou mantinham-se calados no silêncio de suas individualidades. Ao passo que eles conversavam e descobriam-se, sem rédeas ou contenções.
Confessavam seus temores e anseios, suas expectativas e desejos impossíveis. Eram jovens, o que não era nada mal, mas não eram completamente livres. Tinham compromissos e projetos para além daquele ônibus que os constrangiam, impedindo-os de agir conforme suas vontades. Porém, à medida que a viagem progredia mais íntimos tornavam-se, ampliavam sua empatia conforme o ônibus avançava, trocando referências sobre músicas, poemas e filmes.
A paisagem repetitiva tornava-se ainda menos interessante, o tempo transcorrido e a hora precisa pouco importavam, qualquer coisa fora daquelas duas poltronas parecia cada vez menos relevante, suspensa temporariamente diante da premência daquele momento. E assim, de maneira gradual e imprudente, rumavam, deixando para trás suas bagagens mais pesadas. Despindo-se do supérfluo e mantendo apenas o essencial para desfrutar do presente.
O calor do sol os confortava, seus braços tocavam-se e os olhos fugiam, para depois se reencontrarem num sorriso acanhado. As distâncias se encurtavam, aumentando a tensão entre seus corpos. As bocas moviam-se sob seus olhares atentos, provocando-se. Bocas que mordiscavam lábios inquietos e salivavam diante da inevitável proximidade, ao passo que o bom senso e a razão ficavam para trás. Nada mais os constrangia. E a oportunidade urgia, clamando por uma decisão que ecoaria pela eternidade.
Suas vidas se resumiram aquele preciso instante, em que, por fim, seus lábios se encontraram e seus corpos uniram-se num enlace complicado. Pairando sobre o tempo e estendendo-se no espaço, ocupando cada brecha existente com o agora. Num beijo quente e doce, destinado a durar o quanto durasse e repetir-se indefinidamente.
A luz do sol ainda projetava-se pela janela, ela acariciava gentilmente sua barba, alinhando sem pressa os desgrenhados pelos de sua face. Ele limitava-se a sorrir e contemplá-la, enquanto o ônibus fluía inadvertidamente por aquela estrada monótona, sem fim e sem propósito.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Ela me disse

“Vou pro Rio, casar”. Ela me disse, sem rodeios ou preâmbulos, na última vez em que nos encontramos para um café.  Aquilo me surpreendeu de tal forma que não tive forças para formular nada melhor que um débil “Como”? Seguido de um hesitante “Com quem”? Ela então sorriu e me explicou que estava apaixonada, que havia conhecido esse cara, um dentista ou algo assim, e que iriam se casar em algumas semanas.
Não consegui prestar a devida atenção aos detalhes, pois estava atônito com a notícia. Já havia previsto que isto ocorreria algum dia, mas jamais imaginei reagir de maneira tão pueril. Na verdade, temia secretamente por este momento. Conhecia-a de longa data, éramos grandes amigos e amava-a incondicionalmente, porém nunca tive coragem suficiente para admitir minha afeição.
Pois ela sempre foi uma daquelas raras pessoas em que o corpo parece não comportar o espírito, cujo brilho parece extravasar pelos olhos e boca quando sorri. Enquanto eu, não passava de um chato meticuloso que nunca conseguiu acompanhá-la em seu intenso ritmo de viagens e reviravoltas. Dotado de uma sobriedade categórica, sou incapaz de lidar com o imprevisível e por isso temia uma irreversível incompatibilidade entre nós.
Porém, estimava-a demais para sentir-me feliz por ela. Juro que tentei, mas, para ser sincero, invejei profundamente o rapaz responsável por aquela alegria naquele momento. Ele provavelmente a acompanharia em todas suas andanças e viagens ao redor do mundo, seria seu amante e confidente. Quanto a mim, restaria aguardar melancólico por seu retorno, por um convite para um mate e uma conversa ocasional.
Ainda recordo com carinho a primeira vez em que me convidou para viajar, seu plano adolescente consistia em abandonar tudo e cair no mundo. Não tinha roteiro, metas ou prazos, tudo que possuía era uma vontade imensa de conhecer lugares e pessoas diferentes. Pretendia pegar a estrada a pé ou pedindo carona se necessário, os detalhes eram supérfluos. Lembro-me de ter tentado dissuadi-la, mas foi em vão, na época era ainda mais teimosa e idealista. E nenhum argumento lógico ou racional era capaz de demovê-la de suas convicções.
   Somado a isto, era dona de um espírito livre irrepreensível e de um lindo sorriso entreaberto, único, levemente cerrado e capaz de desarmar qualquer tempestade. Em outras palavras, possuía o mundo a sua frente e uma vontade imensa de sorvê-lo. Vontade esta que se renovava a cada novo destino descoberto e fortalecia-se no interior de sua lógica insaciável, onde cada paisagem, pessoa ou cultura conhecida, levava a outra ainda mais distante.
Aquilo se tornou seu modo de vida. E impulsionada por esta dinâmica conheceu lugares e percorreu distâncias que eu jamais sonharia em realizar. Porém, por mais longe que fosse sua aventura, mesmo nos destinos mais deslumbrantes, sempre retornava para a casa antes de iniciar uma nova jornada. Como o barco que vai ao largo à busca de peixes maiores, mas só cumpre seu destino quando retorna ao porto.
Nestes curtos intervalos entre partidas eu aproveitava para conhecer o mundo em sua companhia. Através de seus relatos deliciava-me com praias longínquas e culturas exóticas, acompanhava cada passo de suas viagens com entusiasmo, mas sem os riscos e desconfortos geralmente envolvidos. Mas agora tudo isto estava ameaçado, não retornaria mais para casa e eu certamente perderia o privilégio de principal interlocutor, além disto, qualquer esperança de revelar meus sentimentos tornava-se ainda mais remota.
Convidou apenas seu círculo familiar mais estreito e alguns amigos íntimos para o evento. Fiz questão de inventar uma desculpa canastra para não aparecer, ao que ela respondeu com uma magoada indiferença. Mas ouvi falar que do lado do noivo os preparativos foram grandes. Anunciada nas colunas sociais mais bacanas do Rio, a festa prometia bolo, banda, bugigangas e incontáveis barris de chope.
Só não estava previsto o imenso barraco que se armou quando sua futura sogra foi lhe buscar, após quarenta minutos de atraso, e acabou barrada por seu pai na porta do quarto. A velha enfurecida com o atraso, que estava sendo transmitido por uma emissora local, se pôs a despejar uma série de impropérios contra a porta que a detinha.  Mais tarde me confessou que ficou apavorada com toda aquela estrutura e cerimônia. Não se reconhecia em nada daquilo e não tinha mais certeza se o queria. Porém, foi somente no momento em que a velha começou a gritar em cifras e quinhões que percebeu seu erro.
Partiu no mesmo dia para Galápagos, e por lá ficou durante umas duas semanas incomunicável. Dias depois de voltar para a casa descobriu que seu antigo noivo havia noivado novamente, desta vez com a madrinha que o havia consolado após sua fuga. No mais recente encontro que tivemos para o tradicional café, revelou-me que isto não a entristecia, pelo contrário, expiava toda a culpa e tornava-a ainda mais disposta para retomar sua vida.
Disse-me, porém, que no momento não planejava grandes viagens, pensava em ficar um pouco por aqui e conhecer melhor a região. Após proferir esta resolução me convidou para uma caminhada pela serra vizinha no final de semana. Indeciso, fiquei de pensar na resposta. Ela sacudiu ligeiramente a cabeça, me lançou um daqueles sorrisos e despediu-se.
Não tenho certeza sobre a intencionalidade do ato, mas ao aproximar meu rosto para beijar sua face, senti o canto de seus lábios tocarem sutilmente os meus. Recostei-me desnorteado na cadeira enquanto ela partia novamente, aquele ínfimo fragmento de lábios bastou para elevar meu estado de espírito à condição de indomável. Tanto que estou seriamente pensando em comprar um tênis para caminhadas amanhã.


domingo, 13 de abril de 2014

Histórias de Vento

Avistei-o pela primeira vez enquanto caminhava em automático pela cidade, fui logo despertado do torpor cotidiano ao me deparar com aquela cena inusitada. Um senhor de cabelos brancos pendurava sacos plásticos nos galhos de uma árvore à beira de um lago artificial, após algum tempo insuflados pelo vento o homem passava um barbante na boca dos sacos e os levava embora.
Num primeiro momento acreditei que aquela imagem chamava à atenção por sua excepcionalidade, por tratar-se de algo incomum de se encontrar numa cidade grande. Porém, pensando um pouco melhor, percebi que a cena não se encaixaria em nenhum outro contexto e que, pelo contrário, somente numa grande e indiferente cidade seria capaz de se perpetuar.
Ao longo dos meses seguintes o quadro se repetiu algumas vezes e em todas eu parei para admirar aquela insólita situação. Havia algo de belo na cena, eu não sabia precisar exatamente o que, mas alguma coisa naquele senhor de aparência humilde amarrando barbantes em sacos insuflados despertava minha sensibilidade.
Talvez fosse algo na determinação que ele esboçava ao pendurar os sacos abertos, cuidadosamente alinhados pela direção do vento, nos ramos das árvores. Ou talvez fosse a fragilidade envolvida na operação, sujeita ao fracasso se qualquer lufada mais forte surgisse.
O certo era que para mim a cena assemelhava-se a um poema, um poema escrito em meio ao caos e a sujeira das ruas. Como um daqueles estêncis desconcertantes com os quais nos deparamos enquanto marchamos como formigas entre edifícios e viadutos, que nos obrigam a levantar os olhos da trilha e pensar por um mísero segundo antes de continuarmos. Todavia este poema movia-se, falava e sentia. E por alguma razão inescrutável, repetia-se regularmente.
Sondei amigos e conhecidos buscando saber algo mais sobre o velho homem e seu ritual, mas poucos sabiam ao que me referia e os que tinham alguma ciência nada mais puderam me informar. Em face deste empecilho mudei de estratégia, como já o havia visto em três lugares distintos: no píer, no parque central e no lago artificial do viaduto, passei a buscar informações próximo a estes locais.
Após alguma pesquisa descobri que era um homem recluso, de poucas palavras, que morava sozinho em algum pequeno apartamento no centro. Porém ninguém nos arredores o conhecia bem, ou se importava com suas motivações. O fato mais interessante que consegui perscrutar adveio do dono de uma barraca de frutas próximo ao viaduto, “Ele sempre aparece quando o vento muda”.
Eu estava a ponto de me dar por satisfeito com a história quando surgiu esta informação. Ora, afinal de contas não era qualquer vento que o homem ensacava, mas sim um vento em particular, um vento novo e em doses limitadas. Minha curiosidade afiou-se com esta descoberta. Precisava encontrá-lo novamente, interrogá-lo sobre o significado daquele ritual insondável.
Porém o vento não voltou a soprar por duas semanas, uma calmaria modorrenta pairou sobre a cidade e sobre meu espírito. Minhas tendências niilistas se acentuaram e nada mais me interessou neste ínterim. Mas em meio à rotina insensata mantive-me atento as folhas nas árvores e quando o primeiro sopro arrastou bitucas e papéis pelas sarjetas, percebi seu farfalhar junto aos galhos mais próximos.
Corri em direção ao lago, onde o vi pela primeira vez, esperando encontrá-lo novamente. Mas não havia nada lá além de pequenas árvores saudando-me com seu suave balanço. Angustiado, rumei na direção do píer. Enquanto caminhava questionei os motivos de toda esta dedicação a algo tão estranho a mim. Incapaz de formular uma resposta adequada, segui caminhando.
A uma considerável distância avistei os sacos tremulando ao vento e pude sentir um involuntário sorriso formando-se em meu rosto. Lá estava o velho ensacando o vento. Abordei-o com espontaneidade, fui logo falando em poesia e coisas desconexas que provavelmente o assustaram. Apresentou uma reticência inicial ao diálogo, mas logo percebi tratar-se de um homem solitário que provavelmente não tinha oportunidade de conversar há algum tempo.
Por fim devo ter inspirado alguma confiança no velho, pois quando me calei despejou sobre mim todo o tipo de teoria conspiratória, acompanhadas das mais absurdas conclusões. Coletava o vento para analisá-lo em casa, a fim de comprovar experimentos alien-comunistas que eram realizados no outro lado do rio. Seu método consistia em submeter pequenos insetos como formigas a longos períodos de radiação no interior dos sacos. Contou-me que uma vez o vento estava tão contaminado que até mesmo uma barata havia sucumbido ao cabo de uma semana.
Aquilo me decepcionou imensamente. O que eu imaginava tratar-se de um gesto de insurgência contra o cotidiano, um manifesto de poética rebeldia, nada mais era do que uma alma aquebrantada, desarticulada e derrotada pela vida. Despedi-me com pesar do velho e nunca mais o procurei.
Ainda o encontro nos mesmos lugares, ensacando seu vento, indiferente as minhas expectativas. Porém quando me perguntam sobre ele conto uma história diferente. Conto que ensaca os ventos na esperança de encontrar uma mensagem de seu filho velejador, há muito desaparecido no oceano, que prometeu mandar-lhe notícias pelos alísios.   
Em geral as pessoas apreciam e se sensibilizam com esta narrativa, eu mesmo me satisfaço com a ideia de contá-la desta forma. Pois percebi, graças ao homem que ensacava o vento, que a vida é uma história que contamos repetidamente a nós mesmos, e que às vezes é preciso adornar a história para melhor suportá-la. 

segunda-feira, 31 de março de 2014

Saudosismos Anacrônicos

Silva desligou o aparelho televisor consternado, botou de lado o controle remoto e levantou-se do sofá. Dirigiu-se a cozinha do seu pequeno apartamento e colocou uma congelada lasanha à bolonhesa no forno micro-ondas, enquanto aguardava pela odiosa refeição não pode deixar de pensar sobre a estupidez daquela notícia. Estava tudo errado, eles haviam entendido tudo ao contrário. Bando de idiotas retardados! Maldita seja esta geração que distorce tudo e não respeita nada.
Inclinou-se para acariciar seu cão Abelardo, um buldogue inglês extremamente gordo e bonachão, e lhe disse que ultimamente só ele o entendia. Distraiu-se com o animal por um tempo, afagando lhe a parte posterior da cabeça. Este gesto provocava uma reação em Abelardo que muito o agradava, o cão inclinava a cabeça para trás, relaxava a língua a ponto de ela pender para fora da boca e semicerrava os olhos numa expressão de total prazer. Sua mulher costumava-lhe fazer isto quando viva.
Antes de sua morte Silva não nutria nenhuma atenção especial ao cão, pelo contrário, achava-o estúpido e sujo. Com o tempo, porém, Abelardo tornou-se sua melhor companhia e além disso o animal parecia lhe proporcionar uma última forma de contato com a falecida mulher. Tinha certa vergonha desta impressão e por isso não a compartilhava com ninguém, não que houvesse muitos a quem falar, mas apostava que aquelas velhas cachorreiras da Rua da República adorariam saber.
Ao levantar-se sentiu uma fisgada nas costas, o incômodo lembrou-o da notícia estapafúrdia e o desgostou novamente. Como podiam levar a sério uma incongruência daquelas?  Aquilo serviria apenas para ridicularizá-los, estavam completamente fora do contexto. Pensou em ligar para algum conhecido dos velhos tempos e comentar sobre o assunto, mas no momento seguinte a ideia pareceu-lhe idiota. Em geral falavam-se apenas quando estritamente necessário, não sabia ao certo o porquê, mas assim o era.
Porém, sentia-se inconformado com tamanha tolice. Veja só se tem cabimento? Reeditar a Marcha da Família com Deus pela Liberdade era simplesmente a coisa mais estupida que ouvira falar. O que sabiam estes parvos da Marcha ou do movimento militar, dos valores envolvidos na revolução? Nada, o momento era completamente diferente. Na época estávamos diante de uma ameaça real e concreta, uma proposta alternativa de sociedade espreitava e pretendia corromper todas as bases da nossa moral.
Hoje em dia não há ameaça, não há valores, tudo se perdeu há muito tempo. Esta geração chafurda numa lama de caos e degenerescência crescente, não bastasse isso agora querem corromper a memória do que era bom. Seus pensamentos foram interrompidos pelo bipe do micro-ondas, arrastou seus chinelos até o eletrodoméstico, seguido atenciosamente por Abelardo, e levou a comida pronta até a mesa de jantar. Nestes momentos de solitária refeição sentia ainda mais a falta da mulher.
Soprava vagarosamente a insossa lasanha sobre o garfo, recordando com prazer a excitação e a energia daquele período. Lembrou-se do tempo em que viviam em São Paulo, onde havia transferido sua lotação e servia como segundo tenente no 2º Batalhão de Engenharia. Após o fatídico comício do Jango, as pessoas de bem se indignaram com aqueles desmandos vermelhos e se mobilizaram para organizar uma manifestação grandiosa, a inconformidade se espalhou e transformou-se em uma emoção contagiante.
Nada parecido com esta patetice que planejavam. Pois no passado tudo era muito mais claro, hoje em dia são todos uns aproveitadores duas caras e nem mesmo outra intervenção militar salvaria estes tolos de sua corrupção. Após este instante de agitada reflexão sentiu-se desmotivado e sem fome, levantou-se da mesa e despejou o restante da lasanha no pote do Abelardo, que a engoliu avidamente ainda quente.
Organizava suas pílulas no banheiro quando escutou o estridente telefone tocando na sala. Aquele ruído alto sempre o assustava quando invadia e ocupava a tranquilidade daquele ambiente não acostumado ao barulho. Sentou-se na poltrona junto ao telefone e atendeu-o com a seriedade habitual, do outro lado da linha seu antigo companheiro general reformado Ulstra informava-o de um conhecido em comum que falecera e seria enterrado amanhã pela manhã. Silva aproveitou a oportunidade e o questionou sobre a Marcha.
Após o colóquio desligou o telefone ainda mais desorientado, entendia a opinião de Ulstra de que nestes tempos difíceis qualquer um que não fosse contra o movimento deveria ser louvado, mas não conseguia equiparar-se aqueles idiotas que apareceram na televisão, muito menos considerá-los como iguais. Teria sido ele um dia tão tolo quanto eles? Fez um esforço para rapidamente dissolver a questão.
Tinha arrependimentos na vida como qualquer outro ser humano e como tal passou por coisas desagradáveis que não fazia nenhuma questão de recordar, mas não ousava nunca questionar-se sobre este tema. Não havia espaço, tempo ou forças para isto. Nestas horas apegava-se a antigas convicções que o salvavam da dúvida. No momento seguinte Abelardo deitou sobre seus pés, Silva acariciou lhe entre as orelhas, soltou um suspiro resignado e repetiu para o cão que apenas ele o compreendia.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Zonas Cinzentas

Era uma manhã cinza de domingo, todo o frescor matinal já havia se extinguido, e com ele grande parte da minha disposição, porém o encoberto sol ainda estava longe do seu ápice. Naquela hora ambígua, aguardava sozinho na parada por um ônibus que não tinha certeza se passaria. Estava ali por mais tempo do que gostaria, mas era incapaz de precisar o quanto.
 Sentado no mais modesto dos bancos, aguardava distraído enquanto minha atenção oscilava entre o perto e o infinito. Pensei em me informar, mas as poucas pessoas que cruzavam por mim pareciam ainda mais distantes do que o normal, vagando como fantasmas esquecidos em sendas sem propósitos. Ainda assim eu era incapaz de encará-las por muito tempo, uma vez que meu olhar rapidamente desviava-se para detalhes que me levavam a longos devaneios.
Uma rachadura no concreto ou um padrão estampado eram suficientes para me lançar ao mais abstrato e inefável dos reinos. E quando retornava à parada não havia qualquer indício do tempo transcorrido, ou do ônibus que aguardava. Fui assim, perdendo pouco a pouco toda orientação. Sem dúvida esta foi a mais estranha e aterradora sensação que experimentei, em seguida tudo passou a dissolver-se na minha mente confusa.
Não apenas o tempo foi suspenso, mas o espaço também não fazia mais o mesmo sentido. E uma terrível insegurança em relação ao meu destino e localização se abateu sobre mim. Olhava ao redor, buscando referências, mas não as encontrava em lugar algum. Fiz esforços imensos, tentando relembrar minha torta trajetória até então, mas era tudo confusão. Perdido nesta desoladora indefinição me agarrei a minha única certeza: pegar o ônibus.
Resoluto em minha decisão, aguardei com uma ansiedade redobrada pelo ônibus em que nunca subiria. Pouco importava agora qual linha tomar, tinha a convicção de que bastava entrar no coletivo para dissipar a névoa que obscurecia meus pensamentos. Neste instante, porém, me ocorreu o quão perturbado eu deveria parecer aos olhos dos passantes e imaginei-me olhando para minha triste figura. Por um momento tive pena de mim, compaixão por aquele indivíduo solitário e perdido no tempo.
O som do pesado motor desfez a imagem e pude avistá-lo vindo em minha direção. Levantei e acenei com clareza para que parasse, porém o motorista nem sequer reduziu, cruzou por mim como se eu não existisse. Mas o pior, para a já debilitada condição mental em que me encontrava, foi a cena com que me deparei a seguir. Sentado junto à janela do ônibus avistei nitidamente minha própria pessoa. E eu tranquilamente passei por mim, encarei-me com desdém e segui imperturbado com minha viagem.
Atônito com esta visão, atirei-me novamente ao banco sem saber o que pensar. Enquanto isto a última gota de orvalho da manhã chamou minha desolada atenção, ela desprendia-se lentamente de um buraco semicoberto do precário telhado da parada. Pendida ali, mais parecia uma gota de mercúrio reluzente, pois ao encará-la me vi refletido com tamanha definição e de um ângulo tão obtuso que novamente não pude acreditar nos meus olhos.
Entretanto, para completar meu pavor, a imagem refletida pela gota convexa não era minha. Mas de um homem muito mais velho, trajado como eu, porém calvo e decrépito. Um arrepio percorreu minha espinha, e temi que minha vida houvesse passado nesta parada. Pois passei a me sentir tal qual a imagem, um ancião solitário, perdido numa indefinida manhã cinza de domingo.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Damas da Noite

Existem noites distintas, noites que não se confundem com as demais devido as sutis alterações que provocam no meu estado de espírito. Seus sinais não são claros, muitas vezes só os reconheço quando já estou na cama tentando dormir. É neste momento que a primeira das três insistentes damas me assedia. Após muitos minutos pensando, virando e planejando, escuto um ruído que parece vir da cozinha. Incerto, levanto para verificar.
Sob a luz pálida da geladeira aberta, com seus cabelos soltos sobre os ombros e usando pijamas, encontra-se a Insônia. Ela busca algo para comer, mas me diz que não está com fome. Caminha o tempo inteiro pela casa enquanto conversa comigo sobre o que pretende fazer amanhã. É uma mulher muito inteligente e criativa, um tanto quanto neurótica, possui ideias interessantes e ótimas sugestões para ações passadas, mas em geral sabe que não se lembrará delas pela manhã.
Mesmo assim a conversa é boa, por vezes ela fuma, em outras toma café. Porém, apesar de seus encantos como mulher, as horas parecem não passar em sua companhia. Depois de algum tempo me entedio e busco a janela. Algo lá fora parece me chamar enquanto vago pela casa conversando com a Insônia. Lentamente me dirijo à persiana e espio por entre suas frestas, sem grande alarde para não provocar ciúmes na primeira das três damas.
Lá fora está a segunda e mais sensual entre elas. Uma morena de cabelos negros e pele escura que me chama para sair escorada num poste de luz. Seu nome é Rua e ela não perde tempo, assim que piso fora de casa ela me beija e sinto todo o prazer de seu hálito fresco. Sua companhia é libertadora, com ela minha alma parece renovada e mais disposta a se expressar.
Sua figura me inspira, rimas deslavadas e poemas descuidados desprendem-se dos meus lábios enquanto contemplo sua beleza. Junto a ela as emoções se expandem, corremos e dançamos ébrios pela noite, despistando as pesadas preocupações que ficam para trás. Cansados, paramos sorrindo para respirar um instante, mas quando ensaiava uma canção desafinada para ela percebo a aproximação da terceira dama além da curva da esquina.
A luz que a antecede denuncia sua presença, cria expectativas, pois a visão completa desta dama é encantadora. Seu brilho rouba a cena da Rua e sou obrigado admirá-la por um longo tempo. Chamam-na de Lua, embora não atenda por nome algum. É uma mulher distante, cheia de insondáveis mistérios. Em geral súplicas e declarações não surtem efeito junto a ela, mas nestas noites distintas, apesar da sua reserva, me acompanha atentamente.
Este mágico instante parece durar para sempre, enquanto falo e discorro sobre todo tipo de leviandades ela apenas me encara e sorri levemente. É uma ouvinte nata, que me questiona e interpela apenas com seu olhar reflexivo. E após alguns minutos da mais pura compreensão ela afasta-se, deixando-me só com minhas inquietações. Porém estas não parecem mais tão importantes quanto antes, sinto-me muito mais tranquilo, quase sonolento.
Despreocupado e sereno, anseio agora pela cama que me espera. Despeço-me da Rua, que me sorri sem parecer disposta a parar tão cedo. Ao entrar não vejo a Insônia, apenas seu rastro de cinzas e louça suja pela casa. Todavia, deitada na cama encontra-se a última dama da noite, a única que não me procura, justamente onde a deixei.
Ela respira suavemente ao passo que dorme um sono sem mácula, seu corpo seminu encaixa-se perfeitamente ao meu. Enlaço meu braço sobre sua cintura, sinto o perfume de seus cabelos e o calor de sua pele. Lentamente minha consciência se esvai enquanto relaxo em sua companhia, rumo ao sono profundo de uma noite habitual.