segunda-feira, 28 de julho de 2014

Não-Lugares

Desde que publiquei meu último livro, único que escrevi sob demanda e observei as recomendações do editor, tenho frequentado muitos aeroportos e hotéis. Por sugestão antropológica chamo-os de não-lugares, pois são similares entre si em qualquer outro lugar do mundo e por isso desprovidos de identidades. Ambientes homogeneizados e pasteurizados da vida moderna que transmitem uma impressão amorfa, confundindo-se em nossa memória.
Não posso reclamar, pois, embora não seja exatamente como planejava, finalmente estou obtendo algum reconhecimento pelo meu trabalho. Porém, nos últimos dias esta rotina de divulgação tornou-se extremamente tediosa e cansativa. Tanto que por vezes não tenho certeza se estou indo ou voltando, outras, acordo perdido no meio da noite buscando pelo banheiro na porta do armário.
Com exceção de pequenas diferenças, alguma especificidade da culinária local no café da manhã, um clima mais seco ou um sotaque mais acentuado, tudo se passa como estivesse repetindo-se indefinidamente. Às vezes, ao falar do meu próprio livro, tenho a impressão de tratar sobre outras obras do mesmo gênero, escritas por outros autores que utilizaram as mesmas técnicas, a mesma receita de bolo. Como se tivéssemos todos presos à mesma rotina de não-lugares.
Durante uma destas viagens publicitárias decidi aproveitar a curta distância entre o hotel e a livraria em que faria uma palestra para fugir um pouco deste roteiro enfadonho. Optei por uma leve caminhada pelo bairro em vez de chamar um táxi como de costume. Era o bairro boêmio da cidade, repleto de casas no estilo português, cujas fachadas estendiam-se lado a lado diretamente sobre as calçadas, transformadas em bares, pubs, brechós, restaurantes, barbearias e qualquer outra atividade comercial imaginável. Percorri admirado aquela unidade formal de estruturas contrastadas pela diversidade de conteúdos e cores que emprestavam-lhes certo charme, apesar do constante cheiro de urina.
A frente de uma fachada, porém, detive-me ao perceber um gato deitado sobre o umbral da porta de entrada. Seu rabo esguio balançava de um lado para outro enquanto me encarava com a indiferença típica dos gatos. Reparei melhor na casa, tábuas cruzadas na frente da porta indicavam que estava abandonada, mas algo ainda mais incomum chamou minha atenção: por entre as folhas quebradas da única janela, um galho de árvore atravessava a fachada.
Uma árvore dentro da casa, pensei enquanto o gato me acompanhava com uma expressão entediada de quem ouviu meus pensamentos e os considerou estúpidos. Diante de tamanha censura fui averiguar o interior da casa pela fenda na janela. Para minha surpresa não havia casa, apenas uma fachada remanescente que guardava um pátio abandonado. No interior, além da árvore, via-se uma grande variedade de hortaliças e plantas crescendo livremente, mais ao centro do terreno havia algo que parecia uma mesa e um conjunto de cadeiras de jardim muito velhas.
Soltei-me da janela um tanto assustado com aquela visão, conforme observava os detalhes daquele pátio abandonado uma imagem muito familiar foi formando-se na minha mente. Não fazia o menor sentido, mas aquela disposição assemelhava-se com o jardim da minha infância, o jardim da antiga casa de meus avôs. Confuso, parei um instante para certificar-me em que cidade estava. Porém não era esse o caso, meus avós nunca tinham saído de sua cidade natal.
Convencia-me de que não passava de uma imensa coincidência quando o gato saltou de seu umbral para a minha frente. Encarou-me novamente e com outro pulo sumiu por entre a fresta da janela em direção ao jardim perdido. Por um momento tudo parou e ali estava eu, a Alice diante da toca do coelho, hesitando frente ao desconhecido e temendo por algo que buscava. Na pior das hipóteses escrevo algo sobre isso, argumentei para mim mesmo enquanto forçava a folha da janela.  
  Já no interior do jardim guarnecido pela antiga fachada, uma sensação de arrependimento brotou no meu estômago. A impressão de abandono era completa, ninguém parecia visitar aquele jardim há décadas. Ainda assim uma familiaridade assustadora pairava sobre o local, ruídos de outrora soavam aos meus ouvidos. Risos, conversas, a água caindo sobre as hortaliças, sons de outros tempos que ainda ecoavam entre aquelas paredes.
Perplexo, mas obstinado, caminhei em direção a mesa de jardim onde o famigerado gato estava sentado tal qual uma divindade egípcia. Solicitei sua licença e puxei uma das cadeiras para sentar-me, elas eram precisamente como eu recordava, feitas de ferro torcido pintado de branco e com umas almofadas amarradas sobre o assento. Ele assentiu com a cabeça e tornou a olhar para o além, absorto em pensamentos.
Ao sentar-me percebi, em meio a relva que crescia, uma série de peças de um jogo de chá caídas sobre o chão próximas à mesa. Juntei-as uma a uma enquanto reconhecia seus detalhes azuis pintados à mão, como nas xícaras de minha avó. Organizei-as sobre a mesa, dispondo-as tal qual um retrato antigo que guardo na memória e abaixei-me para adequar o ângulo. Um cheiro doce e marcante de chá de funcho tocou minhas narinas.
A possibilidade de estar sonhando me ocorreu, pois além da singularidade da situação, tudo a minha volta parecia único e repleto de significados. Pensei em beliscar-me para verificar, mas temi acordar em um hotel qualquer com um imenso vazio no peito, ou pior, em meio a uma palestra, diante de uma pergunta sem sentido sobre o meu livro estúpido.
Perante este temor abandonei a ideia, servi-me uma xícara de chá e ofereci outra ao gato, que recusou-a com polidez. Inspirei profundamente aquele ar bucólico e desfrutei sem pressa meu chá enquanto anotava algumas ideias que me ocorriam para um romance, sem ter certeza se conseguiria usá-las.


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