“E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: 'Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes'” (Nietzsche, A Gaia Ciência).
O sol vespertino aquecia e embalava-os,
ela acariciava gentilmente sua barba, alinhando sem pressa os desgrenhados
pelos de sua face. Ele limitava-se a sorrir e contemplá-la. O ônibus fluía por
rodovias anônimas, uma paisagem quase imutável desfilava tediosamente pelas
grandes janelas do coletivo. Todos nas poltronas ao redor dormiam, ou
mantinham-se calados no silêncio de suas individualidades. Ao passo que eles
conversavam e descobriam-se, sem rédeas ou contenções.
Confessavam seus temores e anseios, suas
expectativas e desejos impossíveis. Eram jovens, o que não era nada mal, mas
não eram completamente livres. Tinham compromissos e projetos para além daquele
ônibus que os constrangiam, impedindo-os de agir conforme suas vontades. Porém,
à medida que a viagem progredia mais íntimos tornavam-se, ampliavam sua empatia
conforme o ônibus avançava, trocando referências sobre músicas, poemas e
filmes.
A paisagem repetitiva tornava-se ainda
menos interessante, o tempo transcorrido e a hora precisa pouco importavam,
qualquer coisa fora daquelas duas poltronas parecia cada vez menos relevante,
suspensa temporariamente diante da premência daquele momento. E assim, de
maneira gradual e imprudente, rumavam, deixando para trás suas bagagens mais
pesadas. Despindo-se do supérfluo e mantendo apenas o essencial para desfrutar
do presente.
O calor do sol os confortava, seus braços
tocavam-se e os olhos fugiam, para depois se reencontrarem num sorriso
acanhado. As distâncias se encurtavam, aumentando a tensão entre seus corpos.
As bocas moviam-se sob seus olhares atentos, provocando-se. Bocas que
mordiscavam lábios inquietos e salivavam diante da inevitável proximidade, ao passo que o bom senso e a razão ficavam para trás. Nada mais os constrangia. E a oportunidade urgia, clamando por uma decisão que ecoaria pela eternidade.
Suas vidas se resumiram aquele
preciso instante, em que, por fim, seus lábios se encontraram e seus corpos
uniram-se num enlace complicado. Pairando sobre o tempo e estendendo-se no
espaço, ocupando cada brecha existente com o agora. Num beijo quente e doce,
destinado a durar o quanto durasse e repetir-se indefinidamente.
A luz do sol ainda projetava-se pela
janela, ela acariciava gentilmente sua barba, alinhando sem pressa os
desgrenhados pelos de sua face. Ele limitava-se a sorrir e contemplá-la,
enquanto o ônibus fluía inadvertidamente por aquela estrada monótona, sem fim e sem
propósito.


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