segunda-feira, 19 de maio de 2014

Ela me disse

“Vou pro Rio, casar”. Ela me disse, sem rodeios ou preâmbulos, na última vez em que nos encontramos para um café.  Aquilo me surpreendeu de tal forma que não tive forças para formular nada melhor que um débil “Como”? Seguido de um hesitante “Com quem”? Ela então sorriu e me explicou que estava apaixonada, que havia conhecido esse cara, um dentista ou algo assim, e que iriam se casar em algumas semanas.
Não consegui prestar a devida atenção aos detalhes, pois estava atônito com a notícia. Já havia previsto que isto ocorreria algum dia, mas jamais imaginei reagir de maneira tão pueril. Na verdade, temia secretamente por este momento. Conhecia-a de longa data, éramos grandes amigos e amava-a incondicionalmente, porém nunca tive coragem suficiente para admitir minha afeição.
Pois ela sempre foi uma daquelas raras pessoas em que o corpo parece não comportar o espírito, cujo brilho parece extravasar pelos olhos e boca quando sorri. Enquanto eu, não passava de um chato meticuloso que nunca conseguiu acompanhá-la em seu intenso ritmo de viagens e reviravoltas. Dotado de uma sobriedade categórica, sou incapaz de lidar com o imprevisível e por isso temia uma irreversível incompatibilidade entre nós.
Porém, estimava-a demais para sentir-me feliz por ela. Juro que tentei, mas, para ser sincero, invejei profundamente o rapaz responsável por aquela alegria naquele momento. Ele provavelmente a acompanharia em todas suas andanças e viagens ao redor do mundo, seria seu amante e confidente. Quanto a mim, restaria aguardar melancólico por seu retorno, por um convite para um mate e uma conversa ocasional.
Ainda recordo com carinho a primeira vez em que me convidou para viajar, seu plano adolescente consistia em abandonar tudo e cair no mundo. Não tinha roteiro, metas ou prazos, tudo que possuía era uma vontade imensa de conhecer lugares e pessoas diferentes. Pretendia pegar a estrada a pé ou pedindo carona se necessário, os detalhes eram supérfluos. Lembro-me de ter tentado dissuadi-la, mas foi em vão, na época era ainda mais teimosa e idealista. E nenhum argumento lógico ou racional era capaz de demovê-la de suas convicções.
   Somado a isto, era dona de um espírito livre irrepreensível e de um lindo sorriso entreaberto, único, levemente cerrado e capaz de desarmar qualquer tempestade. Em outras palavras, possuía o mundo a sua frente e uma vontade imensa de sorvê-lo. Vontade esta que se renovava a cada novo destino descoberto e fortalecia-se no interior de sua lógica insaciável, onde cada paisagem, pessoa ou cultura conhecida, levava a outra ainda mais distante.
Aquilo se tornou seu modo de vida. E impulsionada por esta dinâmica conheceu lugares e percorreu distâncias que eu jamais sonharia em realizar. Porém, por mais longe que fosse sua aventura, mesmo nos destinos mais deslumbrantes, sempre retornava para a casa antes de iniciar uma nova jornada. Como o barco que vai ao largo à busca de peixes maiores, mas só cumpre seu destino quando retorna ao porto.
Nestes curtos intervalos entre partidas eu aproveitava para conhecer o mundo em sua companhia. Através de seus relatos deliciava-me com praias longínquas e culturas exóticas, acompanhava cada passo de suas viagens com entusiasmo, mas sem os riscos e desconfortos geralmente envolvidos. Mas agora tudo isto estava ameaçado, não retornaria mais para casa e eu certamente perderia o privilégio de principal interlocutor, além disto, qualquer esperança de revelar meus sentimentos tornava-se ainda mais remota.
Convidou apenas seu círculo familiar mais estreito e alguns amigos íntimos para o evento. Fiz questão de inventar uma desculpa canastra para não aparecer, ao que ela respondeu com uma magoada indiferença. Mas ouvi falar que do lado do noivo os preparativos foram grandes. Anunciada nas colunas sociais mais bacanas do Rio, a festa prometia bolo, banda, bugigangas e incontáveis barris de chope.
Só não estava previsto o imenso barraco que se armou quando sua futura sogra foi lhe buscar, após quarenta minutos de atraso, e acabou barrada por seu pai na porta do quarto. A velha enfurecida com o atraso, que estava sendo transmitido por uma emissora local, se pôs a despejar uma série de impropérios contra a porta que a detinha.  Mais tarde me confessou que ficou apavorada com toda aquela estrutura e cerimônia. Não se reconhecia em nada daquilo e não tinha mais certeza se o queria. Porém, foi somente no momento em que a velha começou a gritar em cifras e quinhões que percebeu seu erro.
Partiu no mesmo dia para Galápagos, e por lá ficou durante umas duas semanas incomunicável. Dias depois de voltar para a casa descobriu que seu antigo noivo havia noivado novamente, desta vez com a madrinha que o havia consolado após sua fuga. No mais recente encontro que tivemos para o tradicional café, revelou-me que isto não a entristecia, pelo contrário, expiava toda a culpa e tornava-a ainda mais disposta para retomar sua vida.
Disse-me, porém, que no momento não planejava grandes viagens, pensava em ficar um pouco por aqui e conhecer melhor a região. Após proferir esta resolução me convidou para uma caminhada pela serra vizinha no final de semana. Indeciso, fiquei de pensar na resposta. Ela sacudiu ligeiramente a cabeça, me lançou um daqueles sorrisos e despediu-se.
Não tenho certeza sobre a intencionalidade do ato, mas ao aproximar meu rosto para beijar sua face, senti o canto de seus lábios tocarem sutilmente os meus. Recostei-me desnorteado na cadeira enquanto ela partia novamente, aquele ínfimo fragmento de lábios bastou para elevar meu estado de espírito à condição de indomável. Tanto que estou seriamente pensando em comprar um tênis para caminhadas amanhã.


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