Há muito tempo, quando eu habitava a casa
de meu avô durante longas temporadas de verão, costumava acompanhá-lo em suas
frequentes incursões à pesca. Todas as manhãs ele acordava bem cedo,
levantava-se em silêncio e preparava suas linhas e anzóis com calma e precisão.
O sol ainda dormia no mar quando ele se aproximava da minha cama e gentilmente
sacudia-me pelos ombros.
A temperatura do ambiente costumava atingir seu
ponto mais baixo neste horário, uma brisa leve geralmente soprava entre as
frestas das janelas e por baixo das portas, trazendo o frio da noite para
dentro da casa. Após levantar eu atravessava a cozinha onde um grande relógio
de parede, feito de placas de metal e números romanos, marcava aproximadamente
a mesma hora todos os dias. Na época eu era incapaz de compreender esta
precisão do meu avô, como ele conseguia acordar por conta todas as manhãs no
mesmo horário? Que motivações eram estas que o tiravam das cobertas quentes
todos os dias por iniciativa própria?
Sem respostas e ainda meio sonolento auxiliava-o
no carregamento dos equipamentos em direção à praia. Marchávamos em silêncio,
contemplando aquele fugaz período de transição entre a noite e o dia. Recordo
aquele semblante calmo e austero mirando a linha do horizonte como quem
prospecta o universo, desvendando todos seus segredos com uma simples fungada.
No instante seguinte ele decidia a direção e a posição em que nos instalaríamos
ao longo da costa. Atitudes como esta tornavam ainda mais obscuras para mim as
determinações da pesca.
Durante a maioria das vezes limitava-me a
observá-lo em ação, seus modos tranquilos dominavam aquela arte como se a
praticasse desde todo o sempre. Certa vez ensinou-me como catar iscas para o
anzol, com paciência e tranquilidade explicou-me sobre as tatuíras boas e ruins
para iscar e sobre como e onde cavar para encontrar os melhores mariscos. Aos
meus olhos infantes toda aquela sabedoria e afeto, transmitidos através
daquelas preciosas lições, transformavam-no em um ser incrivelmente superior
aos demais. Um gigante de conhecimento e sabedoria, capaz de sorver o mundo
todo aos poucos, sem pressa ou solavancos.
Muitos verões se passaram desde que meu avô se
foi. Contudo, após alguns anos voltei a ser sacudido pelos ombros cedo pela
manhã. Seus gestos não eram propriamente silenciosos, pelo contrário, costumava
ser expansivo e brusco em seus movimentos. Agia com ímpeto e determinação, eu
costumava pular assustado da cama devido à tamanha energia. Porém ao cruzar a
cozinha, o velho relógio romano seguia marcando invariavelmente a mesma hora.
Passei a pensar que meu pai herdara do meu avô
esta habilidade de despertar sempre cedo no mesmo horário, entretanto por
alguma falha na cadeia genética esta propriedade havia sido excluída da minha
constituição. Em geral seguíamos o mesmo roteiro acompanhado pelos mesmos
procedimentos, porém sua personalidade transformava completamente a experiência.
Seu constante sorriso e sua humanidade transbordante contrastavam com o
silêncio contemplativo do seu progenitor.
Falava e fazia com motivação, conversava e
contava piadas enquanto, simultaneamente, iscava, cavava e lançava a chumbada
em direção ao mar. Cumprimentava os raros passantes com entusiasmo, trocava
palavras com desconhecidos como se velhos amigos fossem. Era impossível
manter-se indiferente a ele. Num dia qualquer, com uma faca de serra em
mãos, decidiu ensinar-me como limpar os desafortunados peixes. Com um só
talho passou a decapitar os inertes animais. Em seguida retirava com movimentos
rápidos e bruscos suas barbatanas, nadadeiras e escamas, por fim abria um rasgo
no ventre do peixe e estripava-o com um movimento do polegar. Tudo isto acompanhado
de muita naturalidade e um largo sorriso nos lábios.
Nunca passei desta parte, meus ensinamentos foram
interrompidos por outros interesses. Mas quando me lembro desta tradição
familiar, recordo-me com carinho das silenciosas lições de meu avô. Sua postura
moral inalcançável serviu-me como norte, como um ideal a ser seguido por toda a
vida. Assim como as espontâneas instruções do meu pai, capazes de aproximar e
humanizar a realidade a um nível mais adequado de ser vivido. Ambos
complementavam-se na minha mente.
Um dia destes, mais próximo do presente,
uma inquietação pareceu me assombrar durante o sono, um cheiro de terra e um
assovio do vento me despertaram de tal forma que foi impossível retornar aos
sonhos. Virei na cama durante um tempo antes de decidir levantar. Já sem nenhum
resquício de sono olhei o relógio que marcava cinco e trinta da manhã e saltei
para fora das cobertas. Como se impelido por uma força maior saí para a rua e caminhei
lentamente em direção à praia.
De frente para o impassível oceano, parei por um
momento tentando compreender o significado daquilo tudo. A areia úmida sob meus
pés, o cheiro salgado do ar e a visão daquele vasto horizonte àquela hora da manhã, provocaram em mim uma estranha satisfação. Algo muito além da razão me
informava que ali era o meu lugar naquele momento. Motivado por estas confusas sensações refleti por um breve instante sobre a situação, e após alguns segundos de contida introspecção percebi o óbvio: eu precisava dar continuidade aquele legado.


Irmão,
ResponderExcluirimpossível não deixar rolar está onda salgada que nasce nos olhos e corre até a areia, fazendo novas as antigas iscas.
Imagino que este ímpeto de madrugar esteja enraizado, ou enterrado sobre uma leve camada de areia que cada maré vêm descobrindo aos poucos, trazendo ao natural o empate arremessado a tanto tempo.
Imaginei que compartilharia ainda melhor que eu este sentimento...
ResponderExcluirsem palavras!!!!
ResponderExcluirAlgumas são de tua autoria Clarice.
ResponderExcluir