quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Mais um Noir - Parte 3

O dossiê tinha lama suficiente pra sujar uma penca de deputados, meia dúzia de empresários e umas duas pastas do executivo. O rolo era tão grande que se chafurda-se mais espirrava até na governadora. Era um esquema imenso, envolvia desde obras com licitações escusas, passando por serviços de guinchos camaradas, até concessões de pedágios sem nada em troca. Como eu disse antes, um vespeiro daqueles que ninguém quer meter a mão. Não era a toa que o Marcos estava cagado quando nos encontramos, era preciso ter muito colhão pra publicar uma matéria destas num jornal pequeno como o nosso.

De volta ao meu muquifo, aguardei a ligação dela. Estava ansioso demais para fazer qualquer coisa, há tempos que não me sentia tão agitado. Já estava na quinta cerveja quando o telefone tocou ruidosamente contra o silêncio opressor do apartamento. “Te aguardo no Barato Bar” “Por que tu não vem aqui ?” “Não posso. Tu já está sendo vigiado.”. Desliguei, praguejei, calcei os sapatos e desci.

Na rua a noite era agradável, ótima para uma gelada e uma banda nas gurias. Mas o meu anjo me chamava, era preciso ir até o fim deste rolo. Caminhei tranqüilo, sem levar muita fé na história de estar sendo vigiado, mas os caras eram muito ruins, percebi-os sem fazer esforço. Também não fiz muita questão de despistá-los, se eles nos pegassem era uma forma rápida de descobrir a verdade. Mas a garota era esperta, no boteco não havia nem sombra dela.

Fui ao bar e pedi uma ceva, o garçom prontamente colocou um papel como porta copo no balcão e uma garrafa em cima. Através do casco escuro da garrafa lia-se “Saia pelo banheiro”. Na hora lembro-me de ter pensado, a coisa tá começando a ficar esquisita, mas a essa altura já tava fodido mesmo. Então com a maior naturalidade possível tomei mais um gole da minha ceva e me dirigi ao toalete masculino.

Confesso que não reparei se meus perseguidores haviam me seguido até ali, mas pouco importava, pulei através de uma janela basculante que nunca pensei que seria capaz de atravessar. Arquejante tirava a poeira das roupas quando um farol intenso me ofuscou, o carro deu a partida e encostou ao meu lado. Entrei sem olhar, sabia que era ela, estava começando a curtir aquela garota.

Rodamos algumas quadras antes dela começar a falar, disse que a coisa estava ficando séria, que não era sua intenção me envolver nessa trama, que agora eu estava correndo sérios riscos e que meu apartamento não era mais seguro. Olhava com atenção o movimento de seus peitos enquanto ela matraqueava. Devíamos ir a um motel então, sugeri na maior inocência, ela sorriu um sorriso malicioso e não falou mais.

Eu estava sendo completamente manipulado por aquela garota, e sabia perfeitamente disto, mas não tinha forças para reagir contra aquela trama. Cada ato meu parecia como uma ação premeditada dela. Era como se eu estivesse sendo tragado por um movimento circular inexorável que me impelia em direção a um buraco que me parecia cada vez mais fundo e sem sentido.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

O Anarquista

Cada um de nós encerra seu Mr. Hyde no recôndito mais profundo de seu âmago. O que não significa dizer que ele não exista, mas que ele apenas reside adormecido e anestesiado por todos os longos anos de adestramento social. Hyde corresponde aos nossos impulsos e pulsões mais naturais e instintivos, porém livre de toda e qualquer coerção interior institucionalizada. Trata-se de um ser que embora compartilhe de toda a consciência humana, obedece apenas aos seus desejos mais imediatos e naturais. Livre de qualquer sentimento de empatia, Mr. Hyde age como um indivíduo no estrito senso do conceito.

Logo, Dr. Jekyll estava errado quando supôs que Mr. Hyde representava a essência do que havia de mal em seu ser. Na realidade Hyde era muito mais complexo que isto, pois representava um paradoxo, um ser humano consciente da sociedade, mas indiferente a ela e suas convenções.

Segundo alguns membros da comunidade científica, existem duas formas de coações fundamentais ao comportamento humano; a coação externa, motivada por fatores que transcendem nosso ser, como a natureza e a sociedade; e a coação internalizada, uma coação que se pereniza e se naturaliza na forma de um mecanismo auto-regulador do indivíduo. Esta última costuma ser muito mais eficiente, pois depois de interiorizada prescinde de aparelhamento coercitivo permanente a ser desafiado e objetivado.

O caso do Dr. Jekyll e do Mr. Hyde revela um ser que, através de experimentos químicos, conseguiu se desfazer de todas suas autocoações construídas ao longo dos seus anos de vida, permanecendo preso apenas as coações exteriores impostas de forma imediata pela natureza e pela sociedade. Possibilitando ao Mr. Hyde uma liberdade “moral” muito mais elevada que a permitida pela “consciência” do Dr. Jekyll.

Por isso, embora pareça cruel aos olhos da sociedade inglesa vitoriana pisotear uma criança na rua, para Hyde trata-se de um incidente ocasional, uma vez que ela estava em seu caminho imediato. Porém cabe ressaltar que apesar de isento de autocoação, Hyde permanece coagido externamente pelas regras da sociedade e consciente destas. A diferença produzida pela poção do Dr. Jekyll age justamente sobre este conjunto de valores que adquirimos e internalizamos ao longo da vida, guia de nossas ações, que nos impede de atuarmos de determinadas formas, independentemente da perspectiva de sermos punidos ou não.

O que nos leva ao caso em questão, certo anarquista do século passado, um indivíduo que voluntariamente desenvolveu uma patologia social capaz de liberá-lo de todas as coações interiores, através de uma força de vontade nunca antes registrada pela história da ciência. Um estranho caso de socialização ao inverso, que ultrapassou perigosos limites do conceito de humanidade.

Este anarquista que menciono, trata-se de um antigo conhecido de minha estima, uma alma simples e trabalhadora, porém possuidora de imensos ideais. Proveniente de uma família de operários urbanos foi educado num dos melhores colégios públicos da cidade, iniciou a vida política em comícios sindicais, mas logo abandonou as manifestações e dedicou-se exclusivamente aos estudos sobre as formas de organizações sociais.

Encantou-se com Marx e Engels para logo em seguida trocá-los por Bakunin e Kropotkin, porém sua apoteose intelectual somente chegou após conhecer a obra de Thoreau. Aquela experiência no lago Walden, a possibilidade de quebrar todos os vínculos com a sociedade e viver um isolamento consciente fascinavam aquela mente ativa. Não tardou para que o anarquista rompesse com a família e o emprego e buscasse um refúgio capaz de isolá-lo de todo o contato com a sociedade.

Munido apenas de uma barraca e uma mochila com viveres e ferramentas rumou em direção ao interior, onde encontraria seu Walden e viveria sua vida distante de toda sociedade e de toda opressão e desigualdade provenientes dela. Os primeiros dias foram muito difíceis, dedicava-se apenas a sua sobrevivência e assim como Thoreau não teve tempo de dedicar-se ao seu diário. A partir da segunda semana suas anotações começaram a progredir em volume e substância, na terceira teorizava sobre sua condição e os efeitos em seu intelecto, na quarta semana algo não previsto lhe ocorreu de forma arrebatadora.

Analisando seus escritos percebeu que seu isolamento era-lhe ilusório, que carregava consigo, encerrado em seu ser toda sua sociedade pregressa. Estava imerso em preconceitos e valores indissociáveis de sua pessoa. Sua inconformidade foi imensa. No seu manuscrito final, encontrado abandonado no interior de sua surrada barraca lia-se:

“Renuncio toda minha consciência e humanidade, abandono todas as prerrogativas esperadas de um homem em nome do meu completo isolamento em relação à sociedade. A partir de hoje estão revogadas todas minhas faculdades mentais em favor do livre desenvolvimento do meu instinto e bestialidade. Logo, serei apenas um organismo biológico em busca de subsistência, isento de todo bem ou mal oriundos da consciência e da sociedade.”

Dizem que o espírito do anarquista ainda vaga como um animal pelas coxilhas em busca de água e alimento, mas isso é coisa de leigos que não crêem nos progressos da ciência.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Bukowski e Wolff

Reza a lenda que Charles Bukowski e Fausto Wolff encontraram-se certa vez num boteco mal freqüentado nos arredores de São Francisco. Fausto já estava lá quando Bukowski chegara direto de uma seqüência de páreos mal sucedidos. Não havia muitos outros além deles e do barman no local. Bukowski sentou no extremo oposto do balcão e pediu uma garrafa de Daniel’s e um copo, ao que Fausto brindou com um gesto com seu copo cheio da mesma bebida, que matou de um gole só.

Ficaram por muito tempo sentados bebendo seus uísques em silêncio, ouvindo uma série de antigos jazzes que tocavam num jukebox tão velho quanto os sons que emitia. Mal sabiam o quanto tinham em comum aquelas almas torturadas, o quanto tinham a dizer um ao outro e a compartilhar em termos de sentimentos e trajetórias. Porém o silêncio reinava densamente. Mas seria uma questão de tempo até o álcool fazer efeito, as línguas se soltarem e os ânimos se animarem.

Bukowski ia para a segunda garrafa, o que Fausto acompanhara no mesmo ritmo e com a mesma devoção. Nenhum dos dois saberia dizer quem começou, de fato creio que negariam o ocorrido, mas instaurou-se uma disputa silenciosa de quem agüentava mais trago. Dois egos imensos inflamaram-se ainda mais e puseram-se a entornar seus copos. Ambos sabiam que o ritmo da bebedeira precisava ser controlado, pois o primeiro que se pusesse a beber compulsivamente estaria derrotado. Era preciso ditar um ritmo capaz de pressionar o adversário, mas possível de ser administrado.

A diferença entre eles era de 20 anos, um espaço de tempo considerável em qualquer etapa da vida. Porém nem o velho teimoso, nem o imbecil atrevido iriam ceder ao seu adversário de balcão. Por vezes fingiam não prestar atenção ao outro e desviavam o olhar para outra coisa no bar. Mas o clima de disputa era tão pesado que até mesmo os poucos que lá estavam pareciam estar concentrados no duelo entre os dois etilistas. Um bookmaker oportunista aproveitaria a situação para fazer um extra. As apostas favoreceriam Bukowski, prata da casa já curtida pela idade.

Fausto pediu a terceira garrafa meio em inglês meio em português “Give me mais um Daniel’s”. O barman já desconfiado da possibilidade de não ser pago por todo aquele uísque pediu para acertar a conta por garantia. Do fundo do seu imenso ser, Fausto puxou um suspiro, encarou o homem atrás do balcão, levantou-se do seu banco e puxou sua carteira do bolso de trás para pagar pela bebida. No desenrolar desta ação o barman aproximou-se de sua escopeta clichê escondida abaixo do balcão e respirou aliviado quando Fausto estendeu a mão com o dinheiro.

Simultaneamente Bukowski matava seu ultimo gole e batia com força o copo contra o balcão. Pedia mais uma garrafa, ao que o barman procedeu da mesma forma e com a mesma desconfiança. Porém o velho safado estava quebrado, não tinha dinheiro nem para a primeira dose. E sem alterar sua expressão pediu para pendurar na conta que não tinha. O sacana do barman negou veementemente e deu de ombros ao velho, que não teve alternativa se não levantar e se dirigir lentamente a saída.

O duelo havia acabado. Por causa de um punhado de dólares ninguém saberia quem era capaz de agüentar mais bebida. Fausto, que já havia participado de uma centena de duelos de boteco, sabia reconhecer um adversário a sua altura. Embora aquele velho não parecesse fisicamente páreo para ele, algo na sua atitude displicente, mas confiante indicava a existência de um ser humano suficientemente sofrido para entendê-lo. Um verdadeiro poeta cotidiano escondido por trás daquele semblante carrancudo carregado com um olhar de malicia e ironia.

Ao passo que Bukowski cruzava a porta de saída, Fausto tomado de um impulso levantou-se abruptamente chamando-o. Há quem diga que fora um lapso de empatia, uma disposição momentânea de pagar mais uma rodada para um semelhante. Ou talvez um reconhecimento maior ainda, um espelhamento capaz de gerar uma atitude esperada pelo outro, como um reflexo previsto. O fato é que quando Bukowski, sob o marco da porta, virou-se, Fausto sorrindo-lhe ergueu o copo de uísque no ar na forma de um debochado brinde. Bukowski assentiu levemente com a cabeça mostrou-lhe o dedo médio da mão direita, virou-se e foi embora.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Mais um Noir - Parte 2

Acordei sem ver ninguém ao meu lado. Ela havia sumido. Comecei a me imolar, maldizendo minha ingenuidade. Vesti um calção e segui para a cozinha praguejando internamente. Subitamente estaquei sob o marco ao ver aquele lindo ser usando apenas uma das minhas camisetas. “Não tem nada antes do prazo de validade aqui?” Sorri de forma embaraçada como resposta, enquanto recompunha os cacos do meu ego. Havia preparado torradas, que encarávamos enquanto conversávamos mais tranquilamente.

Procurei em vão não abordar diretamente o assunto. Porém sou daqueles tipos incapazes de dissimulações ou amenidades. Mantive o silêncio enquanto foi suportável, na seqüência despejei sobre a coitada uma pá de perguntas. Muitas ficaram sem respostas. Com muito custo descobri que chegara até mim através de um artigo que havia escrito antes de me afastarem, que seu fato novo consistia em uma ligação que recebera instantes antes da morte do seu amante político, e que me procurara somente agora, pois as ameaças só começaram neste ano eleitoral. Uma penca de mentiras cretinas saídas da mais linda boca que vira nos últimos tempos.

Permiti aquela ladainha enquanto durou sua breve estadia. Despedi-me com um beijo desajeitado e me pus a elaborar uma solução para toda aquela sandice. Se estivesse dizendo a verdade seria um imenso furo jornalístico, daqueles de sair em capa de revistas ordinárias com várias páginas de reportagem. Deveria investigar, mas não poderia ser verdade, seria sorte demais para mim. Fiquei por um tempo sem saber o que fazer, andando de um lado para outro, desconfiado como o santo naquela história da esmola. Por fim decidi que deveria ao menos descobrir mais sobre a garota. Devia ter seguido ela. Estaria em tempo ainda?

Desci correndo pelas escadas, praguejando contra mim pela segunda vez no dia, ganhei a rua e olhei em volta na esperança de encontrá-la. Havia sumido. Teria de aguardar seu contato como combinado. De volta ao apartamento fiz algumas pesquisas sobre o caso e uns contatos com colegas da redação. Nada de muito interessante surgiu desta empreitada, perguntei sobre uma suposta quebra do sigilo telefônico do assessor, mas ninguém sabia nada a respeito. Ao fim da manhã consegui falar com o repórter que era o principal responsável pelo caso no jornal, marcamos um encontro num café às 15 horas.

Quando abordei o assunto Marcos imediatamente solicitou o encontro e não permitiu mais nenhuma palavra. Era um tipo estranho, daqueles dedicados ao extremo, quase obcecados com suas tarefas. Ao pisar no café percebi seu nervosismo, transpirava de tanta ansiedade, estava sentando numa mesa ao fundo, no canto mais escuro do local. “Eu nunca te dei isto! E nego até a morte se for preciso.” Levantou-se e rapidamente saiu porta afora. Sobre a mesa estava um calhamaço imenso com uma folha de rosto em branco. Pedi um expresso e acendi um cigarro enquanto folhava aleatoriamente algumas páginas do relatório...

sábado, 12 de junho de 2010

Determinismos

Madrugada fria. Alguns bêbados e boêmios ainda caminham pelas ruas em busca de um destino. Eu aguardo meu ônibus de mãos nos bolsos. Tô louco pra acender um cigarro, mas meus dedos iriam congelar. Não é noite nem dia, é aquela hora limite quando as coisas se misturam. O ar parece mais denso e linha do horizonte mais extensa. Aqueles pobres infelizes que recém acordaram para trabalhar, como eu, se encontram com os que estão indo para suas casas dormir satisfeitos.

Como eu odeio acordar cedo! Queria poder acordar somente quando desse na telha, quando o sol estivesse alto e o dia mais quente. Mas faz tempo que não cumpro minhas vontades. Atuo quase que mecanicamente, pois desenvolvi uma rotina impossível de ser quebrada. Lembro-me de quando tinha todas as oportunidades a minha frente e tudo era possível. Mas o problema está nas escolhas, cada uma que fazemos encerra milhares de outras e assim sucessivamente até não podermos mais escolher senão sobre a cor da camiseta. E talvez nem isso, pois há aqueles que acreditam na providência divina ou no determinismo cósmico, o que não deixaria nem a camiseta para nós.

Prefiro acreditar que forjei minha própria sorte através das minhas escolhas, é menos desalentador, mas tenho que concordar que as camisetas são determinadas previamente por uma força superior. Pois sempre pego a primeira da pilha, o que poderia ser considerado uma escolha racional frente a um problema cotidiano, porém há uma variável além da ordem aleatória da disposição das camisetas, minha mulher inverte a pilha ocasionalmente para que eu não use sempre as mesmas camisetas. Ou seja, caos total, não possuo nenhum controle nem mesmo sobre as minhas camisetas.

Estou fadado a um destino prévio, cujo qual não adianta lutar. Só me resta observar pacientemente enquanto a vida passa. Aguardando o desenrolar do destino que... Caralho esse ônibus tá atrasado pra caramba! Não aguento mais ficar nesse frio pensando merda!

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Sky Above

Caminhava sobre a tubulação à noite, realizava minha rotina diária e enfadonha, revisando equipamentos e níveis de tanques. O céu parecia mais estrelado do que nunca e exercia uma estranha influência sobre minha disposição. Aquela imensidão toda parecia me oprimir com sua beleza e infinitude, algo como uma troça sobre minha acomodação em relação as possibilidades existentes. Como se o firmamento me encara-se e disse-se "O que aconteceu com aqueles sonhos?"

Retruquei que estavam todos em pé, apenas aguardando o momento certo de executá-los, mas na verdade já havia abandonado alguns, havia me contentado com os mais modestos ou ordinários. Os mais ousados e originais nunca mais me ocorreram. Um vento frio soprou do sul e arrepiou minha espinha até a nuca. Amadurecimento chamava-se aquilo, desistir de idéias malucas de garoto e priorizar coisas importantes como emprego e estabilidade financeira.

Uma estrela cadente cruzou o céu num piscar de olhos, a princípio sorri, depois um terror tomou conta de mim quando percebi não ter um desejo significativo na ponta da língua. Fiz um esforço tremendo, mas as coisas banais que surgiam na minha mente apenas pioraram a situação. Passaram-se minutos sem que consegui-se formular um desejo importante. Desisti. Resignei-me a continuar minha rotina sem mais olhar para o céu.

Sobre a tubovia, pulei de uma tubulação para a outra. Ao aterrissar meu pé escorregou e fui inevitavelmente jogado de costas contra o chão. Preso entre duas tubulações, com um tornozelo fraturado, fiquei caído gemendo de dor. Passei o restante do meu turno naquela situação esperando sentirem a minha falta. Contei dezessete estrelas cadentes.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Mais um Noir - Parte 1

Os lençóis grudavam no corpo devido ao calor opressivo, no teto o ventilador girava sem refrescar. Aquela história maluca na minha cabeça não deixava o sono chegar, estava me sentindo num daqueles filmes noir. Já me imaginava em preto e branco, narração em off, um plano vindo de cima, passando pelas pás do ventilador e enquadrando a mim e a deusa deitada ao meu lado na cama.

Todos os clichês estavam presentes; a moça linda e misteriosa, a trama confusa e o caso sem solução. Faltava apenas o detetive particular, solitário e obcecado, cujo papel eu não me encaixava. Na época eu trabalhava de repórter policial de um jornal menor, e estava temporariamente afastado devido a problemas de saúde. Enquanto isso, aquele lindo ser respirava suavemente durante o sono, mas sua história não fazia sentido algum.

Assistia os melhores momentos do jogo quando o interfone tocou, esperei tocar novamente na esperança que fosse um engano. Não era. Ainda não sei bem como ela me convenceu a deixá-la entrar, talvez tenha sido aquele rosto angelical sustentado por um corpo magnífico, ou talvez o medo estampado em seu olhar tenha me comovido. O certo é que ela entrou, e entre lágrimas narrava desordenadamente um assassinato e um complô para matá-la. Eu não ia entendendo nada e já me convencia de que era maluca ou estava drogada. Na primeira menção que fiz de me livrar dela, começou a chorar e soluçar compulsivamente. Abracei-a paternalmente para acalmá-la, após alguns instantes de abraço parecia tranqüilizar-se. Retribuiu meu abraço com um pouco mais de intensidade, apertou minha bunda e tentou enfiar sua língua na minha boca. Resisti bravamente enquanto pude; argumentei que aquilo não estava certo, que eu estaria tirando vantagem da situação, que ela era muito nova para mim, enfim, nada que resistisse aquela volúpia que apenas as mulheres desesperadas possuem.

Na cama, antes de apagar, me contou que tivera um caso com um assessor do governo que fora assassinado, que sabia de coisas que ninguém sabia e por isso queriam eliminá-la. O nome do assessor era muito bem conhecido das páginas de política. A coisa virou policial quando seu carro foi encontrado abandonado numa ponte sobre o lago Paranoá, o corpo, alguns quilômetros abaixo, passou por uma penca de legistas, mas nenhuma autopsia foi conclusiva. Por uma incrível coincidência do destino, o cara era pivô de um escândalo político e estava as vésperas de prestar um depoimento para a policia federal. As últimas novas que eu tinha ouvido eram sobre a intenção da policia civil de encerrar o caso e declarar o suicídio do sujeito. Ou seja, um vespeiro imenso, daqueles que ninguém quer meter a mão.

Imaginei que ela trazia um fato novo que comprova-se o assassinato do político, talvez tivesse presenciado o crime, ou quem sabe possuísse uma carta do tipo “Se algo me acontecer divulgue isso”. Porém o mais estranho era que o caso já estava fazendo aniversário. O que a teria levado a esperar tanto para buscar ajuda? Qual seria sua participação no esquema? Por um bom tempo fiquei apenas ali deitado, pensando na veracidade daquelas palavras e nos próximos passos que daria caso decidisse ajudar aquele lindo anjo. No fundo sabia que já estava atolado nessa até o pescoço.

Continua...

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Formas do Mal

Num banheiro imundo de um bar à beira da estrada, pau numa mão e uma garrafa de cerveja quente na outra. Surge um tipo estranho no mictório vizinho, não reparo nele devido ao código internacional de discrição dos banheiros masculinos. Dou uma sacudida despretensiosa e me dirijo à saída. O tipo se vira e diz “Quero falar contigo”. Contra todas as recomendações paro e olho para ele. Um arrepio gelado sobe pela minha espinha e um gosto amargo cola na minha boca. O cara é magro, veste uma calça jeans e uma camisa branca surrada, seu rosto cadavérico lembra o do Prince em suas piores fases.
Engulo em seco e respondo que não tenho nada a tratar com ele, um sorriso de escárnio se desprende lentamente da sua cara “Mas eu tenho uma proposta muito boa pra ti. Algo irrecusável”. Meu pressentimento de que nada de bom sairia daquele banheiro se intensifica, e por um minúsculo instante questiono minha sanidade mental, o teor alcoólico em meu organismo, minha religiosidade e minha sexualidade.
No fim prevalece meu ímpeto mais mundano “Sem ofensas, mas eu prefiro as mulheres”. O tipo responde com uma gargalhada um tanto exagerada e com uma mão desagradável no meu ombro “Não se trata disso que tu imaginas. Falo de conhecimento e de poder”. Por um instante minhas pernas bêbadas falham, todo sangue do meu corpo parece desaparecer.
Nunca acreditei em nenhum dos lados e nem fiz questão de torcer por nenhum deles, mas também nunca tinha recebido um convite claro para participar do entrevero. Confesso que não estava na melhor condição para avaliar a situação em sua totalidade. Estava na merda já vazia alguns anos, minhas perspectivas passavam longe de ser as melhores e saía de um porre direto para outro. Talvez, por isso uma virada não fosse de todo mal.
Porém não sei ao certo o que me motivou, se foi a aparência do cara ou o contexto que ele escolheu para a proposta. Mas de um impulso respondi que “Não, muito obrigado” e me virando para a porta sai de volta para o bar. Sentei num banco do balcão próximo da saída, e com o olhar fixo na porta do banheiro pedi mais uma gelada. Tremia feito vara verde quando levei a garrafa a boca, acendi um cigarro na cola e fiquei ali esperando aquela criatura sair do toalete.
Um esboço de arrependimento pareceu surgir e um sentimento de "O que tenho a perder" começou a me dominar, mas a falta de coragem impedia qualquer movimento. Lembrei do Dr. Fausto e do Mefistófeles, e pensei que se tivesse feito como o Dr. e pedido para o bicho aparecer em uma forma mais agradável, talvez as coisas seriam diferentes. Talvez um lugar melhor também. Por que raios o Prince? Que bosta de forma para aparecer. Será que ele acha que tá na porra dos anos 80 ainda? Fiquei nessa por algum tempo.
Os poucos bebuns que estavam por lá foram embora e o garçom começou a varrer o chão da pocilga. Percebi que o sol já nascia lá fora quando a porta foi aberta. Desci do meu banco e ganhei a rua. Ao caminhar sem rumo pela calçada, respirando o ar da manhã e sentindo o calor do alvorecer, percebi que tinha tomado a decisão correta. Mais por medo do que por resolução, mas era a escolha mais acertada a ser feita, ou pelo ao menos era enquanto o dia durasse.