quarta-feira, 3 de novembro de 2010

O Anarquista

Cada um de nós encerra seu Mr. Hyde no recôndito mais profundo de seu âmago. O que não significa dizer que ele não exista, mas que ele apenas reside adormecido e anestesiado por todos os longos anos de adestramento social. Hyde corresponde aos nossos impulsos e pulsões mais naturais e instintivos, porém livre de toda e qualquer coerção interior institucionalizada. Trata-se de um ser que embora compartilhe de toda a consciência humana, obedece apenas aos seus desejos mais imediatos e naturais. Livre de qualquer sentimento de empatia, Mr. Hyde age como um indivíduo no estrito senso do conceito.

Logo, Dr. Jekyll estava errado quando supôs que Mr. Hyde representava a essência do que havia de mal em seu ser. Na realidade Hyde era muito mais complexo que isto, pois representava um paradoxo, um ser humano consciente da sociedade, mas indiferente a ela e suas convenções.

Segundo alguns membros da comunidade científica, existem duas formas de coações fundamentais ao comportamento humano; a coação externa, motivada por fatores que transcendem nosso ser, como a natureza e a sociedade; e a coação internalizada, uma coação que se pereniza e se naturaliza na forma de um mecanismo auto-regulador do indivíduo. Esta última costuma ser muito mais eficiente, pois depois de interiorizada prescinde de aparelhamento coercitivo permanente a ser desafiado e objetivado.

O caso do Dr. Jekyll e do Mr. Hyde revela um ser que, através de experimentos químicos, conseguiu se desfazer de todas suas autocoações construídas ao longo dos seus anos de vida, permanecendo preso apenas as coações exteriores impostas de forma imediata pela natureza e pela sociedade. Possibilitando ao Mr. Hyde uma liberdade “moral” muito mais elevada que a permitida pela “consciência” do Dr. Jekyll.

Por isso, embora pareça cruel aos olhos da sociedade inglesa vitoriana pisotear uma criança na rua, para Hyde trata-se de um incidente ocasional, uma vez que ela estava em seu caminho imediato. Porém cabe ressaltar que apesar de isento de autocoação, Hyde permanece coagido externamente pelas regras da sociedade e consciente destas. A diferença produzida pela poção do Dr. Jekyll age justamente sobre este conjunto de valores que adquirimos e internalizamos ao longo da vida, guia de nossas ações, que nos impede de atuarmos de determinadas formas, independentemente da perspectiva de sermos punidos ou não.

O que nos leva ao caso em questão, certo anarquista do século passado, um indivíduo que voluntariamente desenvolveu uma patologia social capaz de liberá-lo de todas as coações interiores, através de uma força de vontade nunca antes registrada pela história da ciência. Um estranho caso de socialização ao inverso, que ultrapassou perigosos limites do conceito de humanidade.

Este anarquista que menciono, trata-se de um antigo conhecido de minha estima, uma alma simples e trabalhadora, porém possuidora de imensos ideais. Proveniente de uma família de operários urbanos foi educado num dos melhores colégios públicos da cidade, iniciou a vida política em comícios sindicais, mas logo abandonou as manifestações e dedicou-se exclusivamente aos estudos sobre as formas de organizações sociais.

Encantou-se com Marx e Engels para logo em seguida trocá-los por Bakunin e Kropotkin, porém sua apoteose intelectual somente chegou após conhecer a obra de Thoreau. Aquela experiência no lago Walden, a possibilidade de quebrar todos os vínculos com a sociedade e viver um isolamento consciente fascinavam aquela mente ativa. Não tardou para que o anarquista rompesse com a família e o emprego e buscasse um refúgio capaz de isolá-lo de todo o contato com a sociedade.

Munido apenas de uma barraca e uma mochila com viveres e ferramentas rumou em direção ao interior, onde encontraria seu Walden e viveria sua vida distante de toda sociedade e de toda opressão e desigualdade provenientes dela. Os primeiros dias foram muito difíceis, dedicava-se apenas a sua sobrevivência e assim como Thoreau não teve tempo de dedicar-se ao seu diário. A partir da segunda semana suas anotações começaram a progredir em volume e substância, na terceira teorizava sobre sua condição e os efeitos em seu intelecto, na quarta semana algo não previsto lhe ocorreu de forma arrebatadora.

Analisando seus escritos percebeu que seu isolamento era-lhe ilusório, que carregava consigo, encerrado em seu ser toda sua sociedade pregressa. Estava imerso em preconceitos e valores indissociáveis de sua pessoa. Sua inconformidade foi imensa. No seu manuscrito final, encontrado abandonado no interior de sua surrada barraca lia-se:

“Renuncio toda minha consciência e humanidade, abandono todas as prerrogativas esperadas de um homem em nome do meu completo isolamento em relação à sociedade. A partir de hoje estão revogadas todas minhas faculdades mentais em favor do livre desenvolvimento do meu instinto e bestialidade. Logo, serei apenas um organismo biológico em busca de subsistência, isento de todo bem ou mal oriundos da consciência e da sociedade.”

Dizem que o espírito do anarquista ainda vaga como um animal pelas coxilhas em busca de água e alimento, mas isso é coisa de leigos que não crêem nos progressos da ciência.

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