terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Uma outra Clarice


Tia Maluca, ela se chamava assim de vez em quando depois de uma gargalhada gostosa meio descontrolada. Não sem algum fundamento, pois a tia Clarice era qualquer coisa, menos convencional. Aliás, suspeito que a tia não se dava bem com nenhuma convenção ordinária ou normalidade. Descendente direta de Cleópatra, discípula trans temporal de Van Gogh, pintava e moldava o mundo a partir de sua perspectiva inconforme. Não fazia muita questão de ajustar-se a ele, presava por seus amigos queridos, familiares confidentes, hábitos sagrados (café e cigarro) e levava o resto ao seu modo. Um modo todo dela, que desde muito cedo testemunhei, mas que custei a entender.
De fato, foi preciso que eu me afastasse dessa experiência, estudasse e debatesse propostas revolucionárias de sociedades que só existem em teoria, para compreender o que a tia Clarice e o Lauci já me ensinavam há anos na prática: amor, tolerância e diversidade. Mais que definir e defender valores a partir de bases teóricas, a tia, junto do seu inseparável companheiro, vivenciava-os. Tendo o afeto como principal força motriz, eles formaram as mais heterodoxas e interessantes famílias que tive o prazer de conhecer.
E seguem formando, segurando as pontas nos momentos mais difíceis e oferecendo abrigo nas tempestades, de quebra ainda tensionam convenções e afrontam bons costumes. Só que a Tia Maluca não pinta mais por aqui, deixou seu legado de quadros e mulheres em perfil espalhados pelo mundo. Olhando meio de lado, como num convite para um café e um cigarro àqueles que não temem o extraordinário.