“Que linda história, querida!
Conte-me outra vez que lhe darei algo para que isso não ocorra
novamente. Mas conte-me com detalhes! São os detalhes que fazem a
diferença.” Explicou-me Dona Rosa de trás do seu balcão
envidraçado, repleto de
óculos antigos e armações coloridas. Eu havia acabado de lhe
contar porquê precisava de um óculos novo e , como de costume, ela
parecia não ter prestado a menor atenção, pois futricou em tudo
quanto era gaveta, tomou notas e acenou aleatoriamente a cabeça
enquanto eu falava. Era uma senhora um tanto quanto distraída e
ríspida com a clientela, mas por algum motivo, pouco claro para mim,
havíamos nos afeiçoado.
Como eu havia hesitado por um
instante ao observá-la, ela retomou o despropositado pedido. “Mais
uma vez meu anjo! Enquanto eu procuro algo aqui para te dar.” Um
pouco aborrecida com a ideia, tomei uma boa dose de ar e recomecei o
relato. Algo naquele jeito desordenado de ser me deixava muito à
vontade, pois não creio que teria feito o mesmo por outra pessoa:
Estávamos viajando pelo sul do
Chile, era o quinto dia de trilha e começávamos a nos sentir
cansados. “Não esqueça dos detalhes!”. Acordamos cedo como
todos os dias e preparamos uma massa com arroz, como todos os dias, e
continuamos a caminhada. As manhãs eram muito frias e cinzentas, o
que tornava a tarefa de sair da barraca aquela hora extremamente
difícil, mas, ao mesmo tempo, as noites eram longas e
desconfortáveis.
Bom mesmo era depois do meio da
manhã, quando o sol firmava no céu e dissipava todas as brumas e
inquietações noturnas, deixando a paisagem com uma nitidez
inacreditável. Cordilheiras imensas surgiam por trás da cortina de
névoa, o calor voltava aos nossos corpos e imensos vales
estendiam-se diante de nós.
Viajávamos eu, R., meu companheiro
e G., nosso amigo. Havíamos planejado aquela viagem com meses de
antecedência, estudamos o trajeto, calculamos os mantimentos e nos
condicionamos fisicamente, mas nada havia nos preparado para aquela
dieta odiosa de arroz e massa. Os outros enlatados, sardinhas, atum e
salsichas, tinham acabado antes do previsto, o que nos deixou ainda
mais dependentes do arroz e da massa. Ou
seja, caminhávamos com uma
triste certeza
em relação
ao
cardápio.
Contudo,
calhou nesse dia de encontrarmos entre um acampamento e outro um
imenso lago de águas cristalinas. Avistamos
de longe seus contornos que perdiam-se para além das montanhas e,
encantados com
aquela
beleza, decidimos nos aproximarmos para vê-lo mais de perto.
Costeamos suas margens durante um longo período sem conseguir
alcançá-lo, até que, em meio a um capão fechado surgiu uma trilha
que levava a uma árvore tombada, cujo tronco parecia
estender-se
sobre a superfície do lago.
Recordo-me
que enquanto avançávamos por
aquela improvável trilha
sorriamos e nos guardávamos inquietamente,
uma expectativa imensa pairava entre nós, o
lugar pareceu ainda mais mágico quando finalmente alcançamos
o tronco caído e
contemplamos o céu e as montanhas refletidas naquelas águas
tranquilas. A satisfação era tremenda! Empolgados, caminhamos até
o limite do tronco projetado sobre o lago e sentamos em sua borda
mais extrema.
A
água sob nossos pés era tão transparente que era possível
enxergar o fundo do lago em
detalhes. Minha vontade
era de mergulhar naquelas
águas e purificar-me, mas
temperatura
não estava muito boa
para isso. Após alguns
minutos de pura contemplação R. sugeriu que ficássemos por lá. Já
havíamos nos desviado consideravelmente da nossa rota e
provavelmente não chegaríamos antes do anoitecer no próximo
acampamento. Porém, havia o problema de que talvez nossas limitadas
provisões não fossem suficientes para mais um dia de trilha.
Ponderamos sobre a questão algum tempo e decidimos arriscar nossas
chances no lago. Quem sabe pescamos algo, sugeriu G., lembrando que
tinha anzol e linha na sua mochila.
Enquanto
G. preparava seu anzol com uma bolinha de pão remanescente, retirei
minhas botas e mergulhei meus pés nas águas geladas e cristalinas.
Sentados lado a lado sobre o tronco, observamos em silêncio o
pequeno pedaço de metal envolto em pão oscilar
sob as águas do lago com
a remota esperança de conseguir algo.
Naquele instante desejei intensamente um peixe para que pudéssemos
evitar, pelo menos por uma
noite, o arroz com massa. Nesse
meio tempo R. tocou de leve minha perna e apontou para o lago. Uma
imensa truta vermelha vinha em nossa direção, ondulando lindamente
na água translúcida.
Foi
exatamente nesse momento que meus óculos caíram na água. Sem poder
me mover, vi-os afundarem, bem devagar, próximos dos meus pés,
enquanto a truta mais linda do mundo acercava-se do nosso anzol.
Estávamos todos tensos,
com os olhos fixos no peixe, seguindo cada movimento seu e chuleando
uma fisgada. Num piscar de
olhos ela mordeu a isca e G. puxou-a para fora com
alguma dificuldade. Toda a tensão
dissipou-se e ficamos
extasiados com o sucesso
improvável da pescaria.
A
truta
ainda se contorcia no anzol quando me virei para recuperar meus
óculos perdidos, porém eles haviam sumido. Procurei-os
ainda durante algum tempo, mas sem sucesso.
E eu adorava aqueles óculos.
De
qualquer forma, acho que foi uma troca justa, pois, com
certeza, aquele foi
o peixe mais bonito e delicioso que já vi na minha vida. Acho
que aconteceu algo como um troca cósmica com o Universo, uma espécie
de equilíbrio afetivo com a natureza. A senhora acredita nisso?
Perguntei para Dona Rosa
ao fim do relato. “Sim,
sim. Claro querida! Linda história… Agora tome esse cordão de
óculos para que isso não
lhe ocorra de novo”.


Muito bom, da me mas
ResponderExcluirValeu, irmão! Fazia tempo que eu não pisava por aqui. Abraço
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