domingo, 26 de junho de 2016

Troca Cósmica

“Que linda história, querida! Conte-me outra vez que lhe darei algo para que isso não ocorra novamente. Mas conte-me com detalhes! São os detalhes que fazem a diferença.” Explicou-me Dona Rosa de trás do seu balcão envidraçado, repleto de óculos antigos e armações coloridas. Eu havia acabado de lhe contar porquê precisava de um óculos novo e , como de costume, ela parecia não ter prestado a menor atenção, pois futricou em tudo quanto era gaveta, tomou notas e acenou aleatoriamente a cabeça enquanto eu falava. Era uma senhora um tanto quanto distraída e ríspida com a clientela, mas por algum motivo, pouco claro para mim, havíamos nos afeiçoado.
Como eu havia hesitado por um instante ao observá-la, ela retomou o despropositado pedido. “Mais uma vez meu anjo! Enquanto eu procuro algo aqui para te dar.” Um pouco aborrecida com a ideia, tomei uma boa dose de ar e recomecei o relato. Algo naquele jeito desordenado de ser me deixava muito à vontade, pois não creio que teria feito o mesmo por outra pessoa:
Estávamos viajando pelo sul do Chile, era o quinto dia de trilha e começávamos a nos sentir cansados. “Não esqueça dos detalhes!”. Acordamos cedo como todos os dias e preparamos uma massa com arroz, como todos os dias, e continuamos a caminhada. As manhãs eram muito frias e cinzentas, o que tornava a tarefa de sair da barraca aquela hora extremamente difícil, mas, ao mesmo tempo, as noites eram longas e desconfortáveis.
Bom mesmo era depois do meio da manhã, quando o sol firmava no céu e dissipava todas as brumas e inquietações noturnas, deixando a paisagem com uma nitidez inacreditável. Cordilheiras imensas surgiam por trás da cortina de névoa, o calor voltava aos nossos corpos e imensos vales estendiam-se diante de nós.
Viajávamos eu, R., meu companheiro e G., nosso amigo. Havíamos planejado aquela viagem com meses de antecedência, estudamos o trajeto, calculamos os mantimentos e nos condicionamos fisicamente, mas nada havia nos preparado para aquela dieta odiosa de arroz e massa. Os outros enlatados, sardinhas, atum e salsichas, tinham acabado antes do previsto, o que nos deixou ainda mais dependentes do arroz e da massa. Ou seja, caminhávamos com uma triste certeza em relação ao cardápio.
Contudo, calhou nesse dia de encontrarmos entre um acampamento e outro um imenso lago de águas cristalinas. Avistamos de longe seus contornos que perdiam-se para além das montanhas e, encantados com aquela beleza, decidimos nos aproximarmos para vê-lo mais de perto. Costeamos suas margens durante um longo período sem conseguir alcançá-lo, até que, em meio a um capão fechado surgiu uma trilha que levava a uma árvore tombada, cujo tronco parecia estender-se sobre a superfície do lago.
Recordo-me que enquanto avançávamos por aquela improvável trilha sorriamos e nos guardávamos inquietamente, uma expectativa imensa pairava entre nós, o lugar pareceu ainda mais mágico quando finalmente alcançamos o tronco caído e contemplamos o céu e as montanhas refletidas naquelas águas tranquilas. A satisfação era tremenda! Empolgados, caminhamos até o limite do tronco projetado sobre o lago e sentamos em sua borda mais extrema.
A água sob nossos pés era tão transparente que era possível enxergar o fundo do lago em detalhes. Minha vontade era de mergulhar naquelas águas e purificar-me, mas temperatura não estava muito boa para isso. Após alguns minutos de pura contemplação R. sugeriu que ficássemos por lá. Já havíamos nos desviado consideravelmente da nossa rota e provavelmente não chegaríamos antes do anoitecer no próximo acampamento. Porém, havia o problema de que talvez nossas limitadas provisões não fossem suficientes para mais um dia de trilha. Ponderamos sobre a questão algum tempo e decidimos arriscar nossas chances no lago. Quem sabe pescamos algo, sugeriu G., lembrando que tinha anzol e linha na sua mochila.
Enquanto G. preparava seu anzol com uma bolinha de pão remanescente, retirei minhas botas e mergulhei meus pés nas águas geladas e cristalinas. Sentados lado a lado sobre o tronco, observamos em silêncio o pequeno pedaço de metal envolto em pão oscilar sob as águas do lago com a remota esperança de conseguir algo. Naquele instante desejei intensamente um peixe para que pudéssemos evitar, pelo menos por uma noite, o arroz com massa. Nesse meio tempo R. tocou de leve minha perna e apontou para o lago. Uma imensa truta vermelha vinha em nossa direção, ondulando lindamente na água translúcida.
Foi exatamente nesse momento que meus óculos caíram na água. Sem poder me mover, vi-os afundarem, bem devagar, próximos dos meus pés, enquanto a truta mais linda do mundo acercava-se do nosso anzol. Estávamos todos tensos, com os olhos fixos no peixe, seguindo cada movimento seu e chuleando uma fisgada. Num piscar de olhos ela mordeu a isca e G. puxou-a para fora com alguma dificuldade. Toda a tensão dissipou-se e ficamos extasiados com o sucesso improvável da pescaria.
A truta ainda se contorcia no anzol quando me virei para recuperar meus óculos perdidos, porém eles haviam sumido. Procurei-os ainda durante algum tempo, mas sem sucesso. E eu adorava aqueles óculos. De qualquer forma, acho que foi uma troca justa, pois, com certeza, aquele foi o peixe mais bonito e delicioso que já vi na minha vida. Acho que aconteceu algo como um troca cósmica com o Universo, uma espécie de equilíbrio afetivo com a natureza. A senhora acredita nisso? Perguntei para Dona Rosa ao fim do relato. “Sim, sim. Claro querida! Linda história… Agora tome esse cordão de óculos para que isso não lhe ocorra de novo”.