terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Sobre a natureza do medo

E se, numa noite qualquer, todos os segredos primordiais lhe fossem revelados. Sussurrados no seu ouvido por uma voz impassível, tão antiga e profunda quanto o próprio tempo. E, ao despertar do torpor infundido por essa revelação, tudo lhe parecesse envolto em uma névoa de incerteza e mistério, como se constituído da matéria onírica de um sonho desperto. O que você faria? Não repeliria esses absurdos em busca de uma explicação racional para a situação?
Foi precisamente essa minha conduta ao levantar da rede em que cochilava. Numa tentativa de afastar aqueles pensamentos perturbadores e retornar a realidade, sacudi a cabeça, esfreguei os olhos e espreguicei-me. Em seguida olhei ao redor e contemplei a noite que se iniciava. Aos poucos a memória voltou e pude me situar naquele ambiente estranho.
Havia dirigido o dia inteiro até o remoto balneário uruguaio em que me encontrava. Dei entrada numa pequena cabana ao lado de um cabo, desci minhas coisas do carro e deitei na rede para apreciar o fim de tarde. Essas foram minhas últimas lembranças antes daquela voz. Não sei ao certo por quanto tempo a ouvi. No começo assemelhava-se ao ruído monótono do mar, depois foi distinguindo-se gradativamente e passou a preencher todo espectro sonoro, até não haver mais nada além do seu tom impassível.
Estremeci ao recordá-la, mirei a praia escura que estendia-se a minha frente e voltei à cabana. Apressei-me em acender uma lâmpada, aquele firmamento interminável pesava como nunca sobre mim. Aos poucos a confusão foi dissipando-se, porém as palavras sussurradas ainda ecoavam, tornando-se mais claras e assustadoras.
Um enredo absurdo lentamente ganhou forma. Tudo girava entorno de uma dualidade fundamental, um equilíbrio preciso entre a luz e a escuridão, mas não havia nenhuma moral humana implicada nessa divisão. Apenas duas “forças” opostas que permitiam a existência de todas as formas de vida. Essa referência foi sucedida pela imagem de uma miríade de criaturas grotescas e incompreensíveis, habitantes de profundezas e fendas desconhecidas, seres tão bizarros quanto assustadores.
Porém, ressoava a voz na minha cabeça, esse equilíbrio vem sendo constantemente tensionado pela luz artificialmente gerada. Empurrando a escuridão para regiões mais remotas e diminutas, onde essas criaturas espremem-se e confabulam, aguardando pelo momento certo de retomar seus espaços. Nesse instante a imagem de uma onda negra, habitada por nefastas criaturas, invadiu minha mente, uma imensidão escura alastrou-se sobre tudo. Sombras moviam-se como tentáculos que partiam de todos os cantos e sobrepunham-se a tudo que alcançavam.
Em meio a essas terríveis recordações o vento que soprava do mar invadiu a cabana e balançou a luminária suspensa sobre a mesa. Seu movimento fez com que as sombras, antes imóveis, se projetassem e ganhassem vida. Um arrepio gelado percorreu minha espinha, as sombras passaram a mover-se e estenderem-se para muito além de suas formas originárias, como se meus pensamentos projetassem sombras sob a luz balançante. Apavorado com aqueles tentáculos negros que ondulavam em minha direção, corri para rua.
O ar da noite estava carregado e as estrelas, mais opacas do que nunca, emitiam um brilho pálido que parecia quase não chegar. Olhei ao longe na direção da cabana central e avistei meu carro, porém, no instante seguinte, sob o peso daquela noite espectral, percebi ter cometido um terrível engano. Aquelas parcas luzes artificiais na cabana eram a única coisa que me mantinham a salvo dos tentáculos na escuridão, pois ao mirar o horizonte em busca do carro percebi uma estrela pálida que apagou-se.
Enquanto caminhava, uma a uma, as estrelas apagavam-se e a escuridão se adensava. Após alguns passos na direção que imaginava correta a escuridão tornou-se completa. O ruído do mar parecia vir de todos os lados e assemelhava-se ao som de entranhas. Atormentado pelo horror, tropecei em algo indescritível, o solo inteiro parecia mover-se como algo vivo e coisas caminhavam sobre mim sem que eu pudesse levantar-me. Desesperado, consegui correr alguns metros antes de torcer o pé e cair novamente.
Naquela hora percebi que não temia qualquer mal a minha saúde ou minha morte, já esperava por ela, mas temia pelo inconcebível, pelo absurdo que representava toda aquela situação. Um medo primordial daquilo que não somos capazes de conceber ou aceitar como real. Diante desse horror me arrastei e debati alguns minutos antes de perder completamente a consciência.
Quando acordei na manhã seguinte, envolto em areia e sargaço, tive a certeza de ter contemplado algo além da compreensão humana. Ninguém acreditaria em uma palavra do meu relato absurdo, me tomariam por bêbado ou paranoico. E não havia como recriminá-los por isso, tamanha a insensatez dessa história. Assim iam meus pensamentos na beira da praia naquela manhã, até o momento em que percebi um segundo sol negro alvorecendo por trás da linha do oceano...