Desde que publiquei meu último livro,
único que escrevi sob demanda e observei as recomendações do editor, tenho
frequentado muitos aeroportos e hotéis. Por sugestão antropológica chamo-os de não-lugares, pois são
similares entre si em qualquer outro lugar do mundo e por isso desprovidos de
identidades. Ambientes homogeneizados e pasteurizados da vida moderna que
transmitem uma impressão amorfa, confundindo-se em nossa memória.
Não posso reclamar, pois, embora não seja
exatamente como planejava, finalmente estou obtendo algum reconhecimento pelo
meu trabalho. Porém, nos últimos dias esta rotina de divulgação tornou-se
extremamente tediosa e cansativa. Tanto que por vezes não tenho certeza se
estou indo ou voltando, outras, acordo perdido no meio da noite buscando pelo
banheiro na porta do armário.
Com exceção de pequenas diferenças,
alguma especificidade da culinária local no café da manhã, um clima mais seco
ou um sotaque mais acentuado, tudo se passa como estivesse repetindo-se
indefinidamente. Às vezes, ao falar do meu próprio livro, tenho a impressão de
tratar sobre outras obras do mesmo gênero, escritas por outros autores que
utilizaram as mesmas técnicas, a mesma receita de bolo. Como se tivéssemos
todos presos à mesma rotina de não-lugares.
Durante uma destas viagens publicitárias
decidi aproveitar a curta distância entre o hotel e a livraria em que faria uma
palestra para fugir um pouco deste roteiro enfadonho. Optei por uma leve
caminhada pelo bairro em vez de chamar um táxi como de costume. Era o bairro
boêmio da cidade, repleto de casas no estilo português, cujas fachadas
estendiam-se lado a lado diretamente sobre as calçadas, transformadas em bares,
pubs, brechós, restaurantes, barbearias e qualquer outra atividade comercial
imaginável. Percorri admirado aquela unidade formal de estruturas contrastadas
pela diversidade de conteúdos e cores que emprestavam-lhes certo charme, apesar
do constante cheiro de urina.
A frente de uma fachada, porém, detive-me
ao perceber um gato deitado sobre o umbral da porta de entrada. Seu rabo esguio
balançava de um lado para outro enquanto me encarava com a indiferença típica
dos gatos. Reparei melhor na casa, tábuas cruzadas na frente da porta indicavam
que estava abandonada, mas algo ainda mais incomum chamou minha atenção: por entre
as folhas quebradas da única janela, um galho de árvore atravessava a fachada.
Uma árvore dentro da casa, pensei enquanto
o gato me acompanhava com uma expressão entediada de quem ouviu meus
pensamentos e os considerou estúpidos. Diante de tamanha censura fui averiguar
o interior da casa pela fenda na janela. Para minha surpresa não havia casa,
apenas uma fachada remanescente que guardava um pátio abandonado. No interior,
além da árvore, via-se uma grande variedade de hortaliças e plantas crescendo
livremente, mais ao centro do terreno havia algo que parecia uma mesa e um
conjunto de cadeiras de jardim muito velhas.
Soltei-me da janela um tanto assustado
com aquela visão, conforme observava os detalhes daquele pátio abandonado uma
imagem muito familiar foi formando-se na minha mente. Não fazia o menor
sentido, mas aquela disposição assemelhava-se com o jardim da minha infância, o
jardim da antiga casa de meus avôs. Confuso, parei um instante para
certificar-me em que cidade estava. Porém não era esse o caso, meus avós nunca
tinham saído de sua cidade natal.
Convencia-me de que não passava de uma
imensa coincidência quando o gato saltou de seu umbral para a minha frente.
Encarou-me novamente e com outro pulo sumiu por entre a fresta da janela em
direção ao jardim perdido. Por um momento tudo parou e ali estava eu, a Alice
diante da toca do coelho, hesitando frente ao desconhecido e temendo por algo
que buscava. Na pior das hipóteses escrevo algo sobre isso, argumentei para mim
mesmo enquanto forçava a folha da janela.
Já no interior do jardim guarnecido pela antiga fachada, uma sensação
de arrependimento brotou no meu estômago. A impressão de abandono era completa,
ninguém parecia visitar aquele jardim há décadas. Ainda assim uma familiaridade
assustadora pairava sobre o local, ruídos de outrora soavam aos meus ouvidos.
Risos, conversas, a água caindo sobre as hortaliças, sons de outros tempos
que ainda ecoavam entre aquelas paredes.
Perplexo, mas obstinado, caminhei em
direção a mesa de jardim onde o famigerado gato estava sentado tal qual uma
divindade egípcia. Solicitei sua licença e puxei uma das cadeiras para
sentar-me, elas eram precisamente como eu recordava, feitas de ferro torcido
pintado de branco e com umas almofadas amarradas sobre o assento. Ele assentiu
com a cabeça e tornou a olhar para o além, absorto em pensamentos.
Ao sentar-me percebi, em meio a relva que
crescia, uma série de peças de um jogo de chá caídas sobre o chão próximas à
mesa. Juntei-as uma a uma enquanto reconhecia seus detalhes azuis pintados à
mão, como nas xícaras de minha avó. Organizei-as sobre a mesa, dispondo-as tal
qual um retrato antigo que guardo na memória e abaixei-me para adequar o ângulo.
Um cheiro doce e marcante de chá de funcho tocou minhas narinas.
A possibilidade de estar sonhando me
ocorreu, pois além da singularidade da situação, tudo a minha volta parecia
único e repleto de significados. Pensei em beliscar-me para verificar, mas temi
acordar em um hotel qualquer com um imenso vazio no peito, ou pior, em meio a
uma palestra, diante de uma pergunta sem sentido sobre o meu livro estúpido.


