quinta-feira, 26 de junho de 2014

Eterno Retorno

“E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: 'Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes'” (Nietzsche, A Gaia Ciência).

O sol vespertino aquecia e embalava-os, ela acariciava gentilmente sua barba, alinhando sem pressa os desgrenhados pelos de sua face. Ele limitava-se a sorrir e contemplá-la. O ônibus fluía por rodovias anônimas, uma paisagem quase imutável desfilava tediosamente pelas grandes janelas do coletivo. Todos nas poltronas ao redor dormiam, ou mantinham-se calados no silêncio de suas individualidades. Ao passo que eles conversavam e descobriam-se, sem rédeas ou contenções.
Confessavam seus temores e anseios, suas expectativas e desejos impossíveis. Eram jovens, o que não era nada mal, mas não eram completamente livres. Tinham compromissos e projetos para além daquele ônibus que os constrangiam, impedindo-os de agir conforme suas vontades. Porém, à medida que a viagem progredia mais íntimos tornavam-se, ampliavam sua empatia conforme o ônibus avançava, trocando referências sobre músicas, poemas e filmes.
A paisagem repetitiva tornava-se ainda menos interessante, o tempo transcorrido e a hora precisa pouco importavam, qualquer coisa fora daquelas duas poltronas parecia cada vez menos relevante, suspensa temporariamente diante da premência daquele momento. E assim, de maneira gradual e imprudente, rumavam, deixando para trás suas bagagens mais pesadas. Despindo-se do supérfluo e mantendo apenas o essencial para desfrutar do presente.
O calor do sol os confortava, seus braços tocavam-se e os olhos fugiam, para depois se reencontrarem num sorriso acanhado. As distâncias se encurtavam, aumentando a tensão entre seus corpos. As bocas moviam-se sob seus olhares atentos, provocando-se. Bocas que mordiscavam lábios inquietos e salivavam diante da inevitável proximidade, ao passo que o bom senso e a razão ficavam para trás. Nada mais os constrangia. E a oportunidade urgia, clamando por uma decisão que ecoaria pela eternidade.
Suas vidas se resumiram aquele preciso instante, em que, por fim, seus lábios se encontraram e seus corpos uniram-se num enlace complicado. Pairando sobre o tempo e estendendo-se no espaço, ocupando cada brecha existente com o agora. Num beijo quente e doce, destinado a durar o quanto durasse e repetir-se indefinidamente.
A luz do sol ainda projetava-se pela janela, ela acariciava gentilmente sua barba, alinhando sem pressa os desgrenhados pelos de sua face. Ele limitava-se a sorrir e contemplá-la, enquanto o ônibus fluía inadvertidamente por aquela estrada monótona, sem fim e sem propósito.