quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

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O canto do Urutau soou longe na mata, despertando Henrique de sonos intranquilos. Mau agouro, pensou mecanicamente, pois não acreditava nessas superstições bobas. Não estava na sua cama, mas na rede do galpão. 

Levantou o corpo pesado com esforço e viu o céu nublado em transição entre as copas das árvores e a colina do Elpídio. Aos poucos as coisas foram se encaixando na sua mente. A visita à cervejaria do vizinho na tarde, a discussão com a mulher antes de sair e a volta ébria pelo acostamento da faixa.

Não era a primeira vez que acontecia e provavelmente não seria a última. Esticou-se com preguiça, soltando um bocejo alto e farejando o ar fresco. Era sábado, dia de abrir o bolicho e receber a freguesia. Dia de trabalho. De fritar pastel, passar café, calcular o troco, limpar mesa, anotar pedido, passar mais café e conversar com as pessoas. Taí, era isso que Henrique mais gostava no seu trabalho, das pessoas ocasionais. Passava a semana sozinho, entre burucutus do mato e o seu desafeto conjugal, conversando sobre os mesmos temas e brigando pelas mesmas picuinhas. Mas no final de semana a coisa mudava de figura, gente de todo o país aparecia na tenda, às vezes de fora. 

A grande maioria era o pessoal da região e o tratamento era protocolar: educado, receptivo, mas limitado a amenidades. De vez em quando, porém, surgia alguém mais interessado, com o espírito aberto dos viajantes e disposto a uma charla mais alongada. Quando isso acontecia, Henrique sobrava, versava sobre qualquer tema com maestria, contava histórias, sugeria caminhos e fazia amigos temporários. Era um trabalho desgastante, mas aquilo o energizava por um tempo. 

Havia comprado tudo na véspera e logo os carros começariam a estacionar no pátio da tenda. Desceu em direção à entrada, passou por trás do depósito e juntou os parafusos e as placas para colocar na estrada. Na passada mirou o velho relógio de parede, 06h45, tinha um tempo ainda para arrumar as coisas.

Instalou as placas de “Aberto”, “Café”, “Pastéis” e “Você merece Conhecer” alguns metros adiante na faixa, eram sua marca registrada. Não cruzou nada nem ninguém durante a operação, o que acontecia com frequência, porém, algo parecia fora do lugar. Não soube precisar de onde vinha a impressão, mas sabia que algo estava errado.

Tirou o cadeado e abriu a corrente de acesso ao pátio. Na cozinha, colocou a água e o leite para aquecer no fogo. Os pastéis já estavam fechados e os sanduíches prontos. Ambientou os utensílios com água quente e passou o primeiro café da manhã. O aroma forte preencheu o ambiente, mas de um jeito diferente do habitual. Como se a sincronia da tarefa estivesse comprometida, como se outros espíritos fossem invocados pelo ritual.

Bobagem, pensou. Cevou o mate e tascou uma rancheira no rádio para espantar qualquer dúvida. 

Mas o estranhamento persistiu. 

Debruçado sobre o balcão, olhou para o pedaço de céu que se apresentava sob aba da tenda. Ainda estava escuro. Será que havia ocorrido algo?

Isolado do jeito que vivia era bem provável que fosse o último a saber. E as coisas não andavam muito tranquilas no mundo, não. Era guerra na Criméia, na Palestina, enchentes, queimadas, populistas, neonazistas, drones assassinos, invasões, atentados, bombas novas, bombas velhas, tudo isso misturado e transmitido por celular, quase que instantaneamente. Mas não sabia onde estava o seu aparelho e não queria entrar em casa para procurar.

Será que conseguiram acabar com o clima de uma vez? Que essa era a noite eterna de um apocalipse nuclear que algum desgraçado começou porque levantou da cama com o pé errado?

Não podia ser. O mundo não estava tão maluco assim. Devia haver uma outra explicação para aquilo. 

Nisso, Megui surgiu de um canto escuro da tenda e começou a se esfregar em suas pernas, ronronando e pedindo comida. Henrique pegou a gata no colo, fez um afago e a colocou sobre uma banqueta reservada para ela. “Tu sabe me dizer o que está acontecendo, Dona Megui?”. A bichana devolveu um olhar inquisidor, firme e distinto, de quem não dá a mínima para as razões dos outros. Em seguida solta um bocejo e se acomoda sobre as próprias patas.

Sem sua reposta, Henrique completou novamente o mate, deu a volta no balcão e caminhou para fora da cobertura. No horizonte, os tons parecem fluir ao contrário e o céu fica cada vez mais escuro. "Mas não é possível! Algo se perdeu pelo caminho". 

Incrédulo, busca uma posição melhor e analisa mais uma vez o céu. Entre nuvens, percebe uma pequena estrela brilhando fracamente, depois outra, e mais outra. Olhando para cima, tem um estalo. Gira em torno do próprio eixo e não consegue conter o riso. 

Era a noite que o Urutau anunciava longe na mata: foi...foi...foi...


segunda-feira, 4 de março de 2024

À deriva - 1

 Há poucas coisas mais desesperadoras do que ver sumir o último resquício de terra na linha do horizonte. A partir daí tudo vira mar e céu. Um medo primordial, daqueles que vem lá do fundo do peito, toma conta da gente. 

Quando se tem um meio de propulsão e um assoalho aos seus pés, esse medo é controlável. Dá para apelar à razão e se concentrar em outras coisas enquanto dissimulamos estar no controle da situação. Agora, quando estamos à deriva sobre um pedaço de poliuretano, sendo arrastados para longe da costa, é impossível negar o medo.

Era ele que me impulsionava, minutos atrás, a remar desesperadamente contra a corrente. É ele que se senta sobre meus ombros agora, paralisando meu corpo e meus pensamentos, na ideia fixa de que a morte é inevitável. 

Enquanto sou arrastado mar adentro, respiro com dificuldade, oscilando entre a esperança remota de ser encontrado por alguma embarcação e a certeza de morrer desidratado ou de hipotermia.  A ideia estúpida de largar a prancha e nadar para a praia ficou para trás há algum tempo, mesmo assim ela ronda minha mente como uma mosca insistente. 

Não há nada a ser feito. Digo para mim mesmo enquanto me resigno a manter o máximo possível o corpo para fora da água. Preciso preservar o calor do corpo e a sanidade.

A tarde estava quente para um dia de outono, convidativa para um banho no pelo. Assim que o sol for embora, porém, isso aqui vai virar um gelo. Por sorte estou de roupa de borracha. Odeio passar frio.

A ideia do anoitecer no meio do mar me aterroriza novamente. Recomeço a remar, forçando os braços adormecidos ao movimento repetitivo. A dor cresce, o ímpeto diminui, e ausência de qualquer referência, além do sol caindo, é desesperadora. 

Sento-me novamente na prancha e choro. Choro por mim, por um apego narcísico à vida, que gradualmente vai se transformando em um choro de tristeza. Penso na minha filha, em tudo que perdi, não disse ou não fiz, e choro em meio à corrente que me leva para longe de tudo.