Avistei-o pela primeira vez enquanto caminhava
em automático pela cidade, fui logo despertado do torpor
cotidiano ao me deparar com aquela cena inusitada. Um senhor de cabelos brancos pendurava sacos plásticos nos galhos de
uma árvore à beira de um lago artificial, após algum tempo insuflados pelo
vento o homem passava um barbante na boca dos sacos e os levava embora.
Num primeiro momento acreditei que aquela
imagem chamava à atenção por sua excepcionalidade, por tratar-se de algo
incomum de se encontrar numa cidade grande. Porém, pensando um pouco melhor,
percebi que a cena não se encaixaria em nenhum outro contexto e que, pelo
contrário, somente numa grande e indiferente cidade seria capaz de se
perpetuar.
Ao longo dos meses seguintes o quadro se repetiu algumas vezes e em todas eu parei para admirar aquela insólita situação. Havia algo
de belo na cena, eu não sabia precisar exatamente o que, mas alguma coisa
naquele senhor de aparência humilde amarrando barbantes em sacos insuflados
despertava minha sensibilidade.
Talvez fosse algo na determinação que ele
esboçava ao pendurar os sacos abertos, cuidadosamente alinhados pela direção do
vento, nos ramos das árvores. Ou talvez fosse a fragilidade envolvida na
operação, sujeita ao fracasso se qualquer lufada mais forte surgisse.
O certo era que para mim a cena
assemelhava-se a um poema, um poema escrito em meio ao caos e a sujeira das
ruas. Como um daqueles estêncis desconcertantes com os quais nos
deparamos enquanto marchamos como formigas entre edifícios e
viadutos, que nos obrigam a levantar os olhos da trilha e pensar por um mísero
segundo antes de continuarmos. Todavia este poema movia-se, falava e sentia. E
por alguma razão inescrutável, repetia-se regularmente.
Sondei amigos e conhecidos buscando saber
algo mais sobre o velho homem e seu ritual, mas poucos sabiam ao que me referia
e os que tinham alguma ciência nada mais puderam me informar. Em face deste
empecilho mudei de estratégia, como já o havia visto em três lugares distintos:
no píer, no parque central e no lago artificial do viaduto, passei a buscar
informações próximo a estes locais.
Após alguma pesquisa descobri que era um
homem recluso, de poucas palavras, que morava sozinho em algum pequeno
apartamento no centro. Porém ninguém nos arredores o conhecia bem, ou se
importava com suas motivações. O fato mais interessante que
consegui perscrutar adveio do dono de uma barraca de frutas próximo ao viaduto,
“Ele sempre aparece quando o vento muda”.
Eu estava a ponto de me dar por satisfeito
com a história quando surgiu esta informação. Ora, afinal de contas não era
qualquer vento que o homem ensacava, mas sim um vento em particular, um vento
novo e em doses limitadas. Minha curiosidade afiou-se com esta descoberta.
Precisava encontrá-lo novamente, interrogá-lo sobre o significado daquele
ritual insondável.
Porém o vento não voltou a soprar por duas
semanas, uma calmaria modorrenta pairou sobre a cidade e sobre meu espírito. Minhas tendências niilistas se acentuaram e nada mais me interessou neste
ínterim. Mas em meio à rotina insensata mantive-me atento as folhas nas árvores e quando o primeiro sopro arrastou bitucas e papéis pelas sarjetas, percebi seu farfalhar junto aos galhos mais próximos.
Corri em direção ao lago, onde o vi pela
primeira vez, esperando encontrá-lo novamente. Mas não havia nada lá além de
pequenas árvores saudando-me com seu suave balanço. Angustiado, rumei na direção do píer. Enquanto caminhava questionei os motivos de toda esta
dedicação a algo tão estranho a mim. Incapaz de formular uma resposta adequada,
segui caminhando.
A uma considerável distância avistei os sacos tremulando ao vento e pude sentir um involuntário sorriso formando-se em
meu rosto. Lá estava o velho ensacando o vento. Abordei-o com espontaneidade, fui logo falando em poesia e coisas desconexas
que provavelmente o assustaram. Apresentou uma reticência inicial ao diálogo, mas logo percebi tratar-se de um homem solitário que provavelmente não tinha oportunidade de conversar há
algum tempo.
Por fim devo ter inspirado alguma
confiança no velho, pois quando me calei despejou sobre mim todo o tipo de
teoria conspiratória, acompanhadas das mais absurdas conclusões. Coletava o
vento para analisá-lo em casa, a fim de comprovar experimentos alien-comunistas
que eram realizados no outro lado do rio. Seu método consistia em submeter
pequenos insetos como formigas a longos períodos de radiação no interior dos
sacos. Contou-me que uma vez o vento estava tão contaminado que até mesmo uma
barata havia sucumbido ao cabo de uma semana.
Aquilo me decepcionou imensamente. O que
eu imaginava tratar-se de um gesto de insurgência contra o cotidiano, um
manifesto de poética rebeldia, nada mais era do que uma alma aquebrantada,
desarticulada e derrotada pela vida. Despedi-me com pesar do velho e nunca mais
o procurei.
Ainda o encontro nos mesmos lugares,
ensacando seu vento, indiferente as minhas expectativas. Porém quando me
perguntam sobre ele conto uma história diferente. Conto que ensaca os ventos na
esperança de encontrar uma mensagem de seu filho velejador, há muito desaparecido no
oceano, que prometeu mandar-lhe notícias pelos alísios.
Em geral as pessoas apreciam e se
sensibilizam com esta narrativa, eu mesmo me satisfaço com a ideia de contá-la desta forma. Pois percebi, graças ao homem
que ensacava o vento, que a vida é uma história que contamos repetidamente a nós mesmos, e que às vezes é preciso adornar a história para melhor suportá-la.

