segunda-feira, 31 de março de 2014

Saudosismos Anacrônicos

Silva desligou o aparelho televisor consternado, botou de lado o controle remoto e levantou-se do sofá. Dirigiu-se a cozinha do seu pequeno apartamento e colocou uma congelada lasanha à bolonhesa no forno micro-ondas, enquanto aguardava pela odiosa refeição não pode deixar de pensar sobre a estupidez daquela notícia. Estava tudo errado, eles haviam entendido tudo ao contrário. Bando de idiotas retardados! Maldita seja esta geração que distorce tudo e não respeita nada.
Inclinou-se para acariciar seu cão Abelardo, um buldogue inglês extremamente gordo e bonachão, e lhe disse que ultimamente só ele o entendia. Distraiu-se com o animal por um tempo, afagando lhe a parte posterior da cabeça. Este gesto provocava uma reação em Abelardo que muito o agradava, o cão inclinava a cabeça para trás, relaxava a língua a ponto de ela pender para fora da boca e semicerrava os olhos numa expressão de total prazer. Sua mulher costumava-lhe fazer isto quando viva.
Antes de sua morte Silva não nutria nenhuma atenção especial ao cão, pelo contrário, achava-o estúpido e sujo. Com o tempo, porém, Abelardo tornou-se sua melhor companhia e além disso o animal parecia lhe proporcionar uma última forma de contato com a falecida mulher. Tinha certa vergonha desta impressão e por isso não a compartilhava com ninguém, não que houvesse muitos a quem falar, mas apostava que aquelas velhas cachorreiras da Rua da República adorariam saber.
Ao levantar-se sentiu uma fisgada nas costas, o incômodo lembrou-o da notícia estapafúrdia e o desgostou novamente. Como podiam levar a sério uma incongruência daquelas?  Aquilo serviria apenas para ridicularizá-los, estavam completamente fora do contexto. Pensou em ligar para algum conhecido dos velhos tempos e comentar sobre o assunto, mas no momento seguinte a ideia pareceu-lhe idiota. Em geral falavam-se apenas quando estritamente necessário, não sabia ao certo o porquê, mas assim o era.
Porém, sentia-se inconformado com tamanha tolice. Veja só se tem cabimento? Reeditar a Marcha da Família com Deus pela Liberdade era simplesmente a coisa mais estupida que ouvira falar. O que sabiam estes parvos da Marcha ou do movimento militar, dos valores envolvidos na revolução? Nada, o momento era completamente diferente. Na época estávamos diante de uma ameaça real e concreta, uma proposta alternativa de sociedade espreitava e pretendia corromper todas as bases da nossa moral.
Hoje em dia não há ameaça, não há valores, tudo se perdeu há muito tempo. Esta geração chafurda numa lama de caos e degenerescência crescente, não bastasse isso agora querem corromper a memória do que era bom. Seus pensamentos foram interrompidos pelo bipe do micro-ondas, arrastou seus chinelos até o eletrodoméstico, seguido atenciosamente por Abelardo, e levou a comida pronta até a mesa de jantar. Nestes momentos de solitária refeição sentia ainda mais a falta da mulher.
Soprava vagarosamente a insossa lasanha sobre o garfo, recordando com prazer a excitação e a energia daquele período. Lembrou-se do tempo em que viviam em São Paulo, onde havia transferido sua lotação e servia como segundo tenente no 2º Batalhão de Engenharia. Após o fatídico comício do Jango, as pessoas de bem se indignaram com aqueles desmandos vermelhos e se mobilizaram para organizar uma manifestação grandiosa, a inconformidade se espalhou e transformou-se em uma emoção contagiante.
Nada parecido com esta patetice que planejavam. Pois no passado tudo era muito mais claro, hoje em dia são todos uns aproveitadores duas caras e nem mesmo outra intervenção militar salvaria estes tolos de sua corrupção. Após este instante de agitada reflexão sentiu-se desmotivado e sem fome, levantou-se da mesa e despejou o restante da lasanha no pote do Abelardo, que a engoliu avidamente ainda quente.
Organizava suas pílulas no banheiro quando escutou o estridente telefone tocando na sala. Aquele ruído alto sempre o assustava quando invadia e ocupava a tranquilidade daquele ambiente não acostumado ao barulho. Sentou-se na poltrona junto ao telefone e atendeu-o com a seriedade habitual, do outro lado da linha seu antigo companheiro general reformado Ulstra informava-o de um conhecido em comum que falecera e seria enterrado amanhã pela manhã. Silva aproveitou a oportunidade e o questionou sobre a Marcha.
Após o colóquio desligou o telefone ainda mais desorientado, entendia a opinião de Ulstra de que nestes tempos difíceis qualquer um que não fosse contra o movimento deveria ser louvado, mas não conseguia equiparar-se aqueles idiotas que apareceram na televisão, muito menos considerá-los como iguais. Teria sido ele um dia tão tolo quanto eles? Fez um esforço para rapidamente dissolver a questão.
Tinha arrependimentos na vida como qualquer outro ser humano e como tal passou por coisas desagradáveis que não fazia nenhuma questão de recordar, mas não ousava nunca questionar-se sobre este tema. Não havia espaço, tempo ou forças para isto. Nestas horas apegava-se a antigas convicções que o salvavam da dúvida. No momento seguinte Abelardo deitou sobre seus pés, Silva acariciou lhe entre as orelhas, soltou um suspiro resignado e repetiu para o cão que apenas ele o compreendia.