segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Céu em Chamas

Naquela noite sonhou caminhar por uma senda estreita, margeada por arbustos escuros e fileiras de velas fúnebres. Uma estranha procissão de um homem só, cujo destino final, de alguma forma sabia, era seu trabalho. Ao acordar sobressaltado olhou através da janela do ônibus e viu a escuridão noturna ser constantemente perturbada por distantes clarões irrompidos de dois flamejantes picos. Uma fumaça negra emanava do topo das grandes torres e misturava-se a densas nuvens no céu.
Logo percebeu que, diferente do seu sonho, não eram velas que iluminavam o caminho, mas imensas estruturas de aço projetadas pela mente humana para queimar todo o excedente de gás combustível em casos de emergências industriais. Um mau agouro pairava no horizonte, carregados pelos ventos, os rastros negros daquelas combustões uniam-se em direção a oeste formando um quadro apocalíptico perturbador. Tons que passavam por todo o espectro de cores incandescentes retocavam a sinistra obra.
Naquele instante, ao contemplar aquele cenário, uma aflição até então desconhecida assolou seu coração. O convívio com um grande perigo, sobcontrole e por um longo período de tempo, havia naturalizado as potencialidades envolvidas na sua atividade profissional. Porém ao ser confrontado assim, de forma tão repentina e intensa, por este inevitável risco, não pode deixar de hesitar por um momento.
Não era a primeira emergência de grande porte que enfrentava, já havia se deparado com situações similares ao longo de sua carreira industrial. Todavia, nunca um mau pressentimento tão intenso esteve presente assim em sua mente. Algo em seu âmago, além do pragmatismo habitual, informava-o do terrível risco da situação. Olhou ao seu redor, buscando em seus colegas de transporte algum conforto, mas logo percebeu que suas expressões não revelavam nenhuma segurança ou determinação, todos pareciam aflitos em suas reflexões pessoais.
Pensou na sua pequena filha, na beleza e ternura de cada traço seu, pensou em como seria triste nunca mais ver seu sorriso e em quanto ela sentiria sua falta nos momentos importantes de sua vida caso nunca mais retornasse para a casa. Lembrou-se de sua mulher e desejou intensamente estreitá-la em seus braços uma vez mais antes de encarar o destino que o aguardava. Desolado, soltou um longo suspiro e voltou-se novamente para as chamas que ardiam no céu amaldiçoando sua profissão e tudo nela envolvido.
Aproximava-se da indústria enquanto os clarões intensificavam-se. Agora já podia sentir o calor da radiação sobre seu rosto. Não havia muito a fazer, todas as escolhas importantes já haviam sido tomadas algum tempo. O trem do destino havia partido e tudo convergia para este momento. De nada adiantaria culpar-se pelas escolhas passadas, restava-lhe apenas buscar forças em algum sentimento capaz de mobilizá-lo. Foi quando o ônibus que o transportava deteve-se antes de adentrar na portaria da planta industrial.
A porta do veículo se abriu e um colega combatente do incêndio entrou coberto de fuligem, passou algumas instruções e informações sobre a emergência aos passageiros e agradeceu imensamente a presença de todos. Era o estímulo que precisava. Uma dose cavalar de adrenalina, somada a um sentimento de empatia por aqueles que lá estavam, despertou nele um senso de dever que superou todos seus receios. E aparentemente todos seus colegas foram tomados pela mesma motivação, pois pareciam agora despertos e totalmente focados em suas futuras ações.
Durante o longo embate contra a provável catástrofe voltou a hesitar apenas uma última vez. Antes de vestir sua roupa de combate ao fogo encarou a longa labareda que se desprendia dos equipamentos em chamas, em direção ao céu coberto de vapores, parou por um instante e pensou mais uma vez com carinho na sua família.