segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Lobos que Pescam


Há muito tempo, quando eu habitava a casa de meu avô durante longas temporadas de verão, costumava acompanhá-lo em suas frequentes incursões à pesca. Todas as manhãs ele acordava bem cedo, levantava-se em silêncio e preparava suas linhas e anzóis com calma e precisão. O sol ainda dormia no mar quando ele se aproximava da minha cama e gentilmente sacudia-me pelos ombros.
A temperatura do ambiente costumava atingir seu ponto mais baixo neste horário, uma brisa leve geralmente soprava entre as frestas das janelas e por baixo das portas, trazendo o frio da noite para dentro da casa. Após levantar eu atravessava a cozinha onde um grande relógio de parede, feito de placas de metal e números romanos, marcava aproximadamente a mesma hora todos os dias. Na época eu era incapaz de compreender esta precisão do meu avô, como ele conseguia acordar por conta todas as manhãs no mesmo horário? Que motivações eram estas que o tiravam das cobertas quentes todos os dias por iniciativa própria?
Sem respostas e ainda meio sonolento auxiliava-o no carregamento dos equipamentos em direção à praia. Marchávamos em silêncio, contemplando aquele fugaz período de transição entre a noite e o dia. Recordo aquele semblante calmo e austero mirando a linha do horizonte como quem prospecta o universo, desvendando todos seus segredos com uma simples fungada. No instante seguinte ele decidia a direção e a posição em que nos instalaríamos ao longo da costa. Atitudes como esta tornavam ainda mais obscuras para mim as determinações da pesca.
Durante a maioria das vezes limitava-me a observá-lo em ação, seus modos tranquilos dominavam aquela arte como se a praticasse desde todo o sempre. Certa vez ensinou-me como catar iscas para o anzol, com paciência e tranquilidade explicou-me sobre as tatuíras boas e ruins para iscar e sobre como e onde cavar para encontrar os melhores mariscos. Aos meus olhos infantes toda aquela sabedoria e afeto, transmitidos através daquelas preciosas lições, transformavam-no em um ser incrivelmente superior aos demais. Um gigante de conhecimento e sabedoria, capaz de sorver o mundo todo aos poucos, sem pressa ou solavancos.
Muitos verões se passaram desde que meu avô se foi. Contudo, após alguns anos voltei a ser sacudido pelos ombros cedo pela manhã. Seus gestos não eram propriamente silenciosos, pelo contrário, costumava ser expansivo e brusco em seus movimentos. Agia com ímpeto e determinação, eu costumava pular assustado da cama devido à tamanha energia. Porém ao cruzar a cozinha, o velho relógio romano seguia marcando invariavelmente a mesma hora.
Passei a pensar que meu pai herdara do meu avô esta habilidade de despertar sempre cedo no mesmo horário, entretanto por alguma falha na cadeia genética esta propriedade havia sido excluída da minha constituição. Em geral seguíamos o mesmo roteiro acompanhado pelos mesmos procedimentos, porém sua personalidade transformava completamente a experiência. Seu constante sorriso e sua humanidade transbordante contrastavam com o silêncio contemplativo do seu progenitor.
Falava e fazia com motivação, conversava e contava piadas enquanto, simultaneamente, iscava, cavava e lançava a chumbada em direção ao mar. Cumprimentava os raros passantes com entusiasmo, trocava palavras com desconhecidos como se velhos amigos fossem. Era impossível manter-se indiferente a ele. Num dia qualquer, com uma faca de serra em mãos, decidiu ensinar-me como limpar os desafortunados peixes. Com um só talho passou a decapitar os inertes animais. Em seguida retirava com movimentos rápidos e bruscos suas barbatanas, nadadeiras e escamas, por fim abria um rasgo no ventre do peixe e estripava-o com um movimento do polegar. Tudo isto acompanhado de muita naturalidade e um largo sorriso nos lábios.
Nunca passei desta parte, meus ensinamentos foram interrompidos por outros interesses. Mas quando me lembro desta tradição familiar, recordo-me com carinho das silenciosas lições de meu avô. Sua postura moral inalcançável serviu-me como norte, como um ideal a ser seguido por toda a vida. Assim como as espontâneas instruções do meu pai, capazes de aproximar e humanizar a realidade a um nível mais adequado de ser vivido. Ambos complementavam-se na minha mente.
 Um dia destes, mais próximo do presente, uma inquietação pareceu me assombrar durante o sono, um cheiro de terra e um assovio do vento me despertaram de tal forma que foi impossível retornar aos sonhos. Virei na cama durante um tempo antes de decidir levantar. Já sem nenhum resquício de sono olhei o relógio que marcava cinco e trinta da manhã e saltei para fora das cobertas. Como se impelido por uma força maior saí para a rua e caminhei lentamente em direção à praia. 
De frente para o impassível oceano, parei por um momento tentando compreender o significado daquilo tudo. A areia úmida sob meus pés, o cheiro salgado do ar e a visão daquele vasto horizonte àquela hora da manhã, provocaram em mim uma estranha satisfação. Algo muito além da razão me informava que ali era o meu lugar naquele momento. Motivado por estas confusas sensações refleti por um breve instante sobre a situação, e após alguns segundos de contida introspecção percebi o óbvio: eu precisava dar continuidade aquele legado.