sexta-feira, 27 de abril de 2012

Caminhos Cruzados


Após uma semana perdendo sistematicamente meu ônibus, enfim consegui alçá-lo antes da torturosa arrancada. Se rico andasse de ônibus, sua partida seria o fenômeno mais democrático do país, pois não distingue nada de ninguém, é indiferente a todas as urgências e importâncias possíveis, deixando para trás todo tipo de rostos desolados ou incrédulos com seu azar. Pior ainda quando arriscamos uma corridinha esperançosa, crentes de que pelo menos desta vez conseguiremos, e somos confrontados com a triste traseira afastando-se numa velocidade quase irônica da parada. 
Já estava quase naturalizando a situação, corria sem a esperança. Porém, um conjunto de determinações universais inexplicáveis permitiu que naquele dia o motorista do ônibus aguardasse minha chegada antes de partir. Não procurei nem ao menos tentar buscar as explicações para ocorrido, talvez estivesse apenas com sorte. Incrédulo, passei a catraca e procurei por um assento, havia apenas um, ao lado de uma pequena senhora idosa. Assentei-me satisfeito, pensando que talvez, só talvez, aquele poderia ser meu dia de sorte.
Abri minha mochila na busca de um artigo científico que deveria ler para a aula da próxima semana, porém havia deixado-o em casa. Recorri então a um livro de literatura que levava para ocasiões como esta. Antes que pudesse iniciar a leitura a senhora ao meu lado pediu licença e solicitou a descida na próxima parada. Quando o ônibus arrancou novamente entrevi sobre as páginas do livro três pessoa na fila para passar a roleta, um cidadão maltrapilho, surrado e aparentemente podre de bêbado, um gordo imenso, cuja testa brilhava e apesar de clima outonal transpirava muito, e uma loira estonteante.
Como era o único assento disponível, calculei rapidamente a probabilidade de a moça loira sentar ao meu lado, minha conclusão prévia foi de que nem em mil corridas com estas mesmas condições isto ocorreria. Contudo tratava-se de um dia particular. E por motivações ainda mais inexplicáveis para mim, o pau d’água decidiu equilibrar-se corajosamente sobre seus próprios pés, o gordo parou próximo à porta, talvez aguardando para descer em breve, e a loira deslizou inacreditavelmente até junto a mim, pediu licença e sentou-se ao meu lado. Decididamente estava com sorte, era uma conclusão irrefutável diante dos fatos apresentados.
Sentia-me iluminado. Encorajado pela sequência de eventos recentes iniciei uma observação despretensiosa da moça com o canto dos olhos. De perto ela era ainda mais bonita do que aparentara, usava uma saia curta e uma meia calça escura e exalava um aroma levemente adocicado. Porém não conseguia visualizá-la em sua totalidade, apenas seu perfil esguio e sisudo me era acessível daquela posição. O livro aberto em minhas mãos já não fazia mais sentido algum, as palavras se embaralhavam naquele perfume e um mero descruzar de pernas me levou as alturas mais distantes. Só fui capaz de retornar ao ônibus quando ela virou-se em minha direção e inclinando-se levemente sobre o livro disse “Adoro Kafka”.
A sentença que flutuou de seus bem desenhados lábios até meus ouvidos incrédulos soou como um dialeto estrangeiro, num primeiro momento fui incapaz de articular tais palavras com o livro que estava em minhas mãos. Somente após o auxílio de seu olhar insistente para o livro compreendi do que tratava seu comentário. Devo ter parecido um tanto idiota, confesso, mas nada que não fosse remediado pela conversa sincera e espontânea que entabulamos na sequência da viagem.
Enquanto versávamos sobre os mais variados temas, não pude deixar de pensar sobre as condições pretéritas que possibilitaram aquela conversa. Ainda assim a companhia foi tão agradável, possuíamos tantos gostos e interesses em comum, que ao fim do meu trajeto peguei seu e-mail, com uma desculpa qualquer de passar a referência de um livro supostamente do seu interesse.
Porém, após descer do coletivo, enquanto caminhava chutando as pedras da rua, refleti profundamente sobre os detalhes da conversa e sobre o contexto da situação. Olhei bem para o pedaço de papel de caderno rasgado, onde estava anotado o e-mail, e soltei-o no ar. Uma brisa faceira levou-o aos rodopios para todas as direções, depois subiu ao céu e desapareceu da minha vista. Era muita sorte para um dia só.