Após
uma semana perdendo sistematicamente meu ônibus, enfim consegui alçá-lo antes
da torturosa arrancada. Se rico andasse de ônibus, sua partida seria o fenômeno
mais democrático do país, pois não distingue nada de ninguém, é indiferente a
todas as urgências e importâncias possíveis, deixando para trás todo tipo de
rostos desolados ou incrédulos com seu azar. Pior ainda quando arriscamos uma
corridinha esperançosa, crentes de que pelo menos desta vez conseguiremos, e
somos confrontados com a triste traseira afastando-se numa velocidade quase
irônica da parada.
Já
estava quase naturalizando a situação, corria sem a esperança. Porém, um
conjunto de determinações universais inexplicáveis permitiu que naquele dia o
motorista do ônibus aguardasse minha chegada antes de partir. Não procurei nem
ao menos tentar buscar as explicações para ocorrido, talvez estivesse apenas
com sorte. Incrédulo, passei a catraca e procurei por um assento, havia apenas
um, ao lado de uma pequena senhora idosa. Assentei-me satisfeito, pensando que
talvez, só talvez, aquele poderia ser meu dia de sorte.
Abri
minha mochila na busca de um artigo científico que deveria ler para a aula da
próxima semana, porém havia deixado-o em casa. Recorri então a um livro de
literatura que levava para ocasiões como esta. Antes que pudesse iniciar a
leitura a senhora ao meu lado pediu licença e solicitou a descida na próxima
parada. Quando o ônibus arrancou novamente entrevi sobre as páginas do livro
três pessoa na fila para passar a roleta, um cidadão maltrapilho, surrado e
aparentemente podre de bêbado, um gordo imenso, cuja testa brilhava e apesar de
clima outonal transpirava muito, e uma loira estonteante.
Como
era o único assento disponível, calculei rapidamente a probabilidade de a moça
loira sentar ao meu lado, minha conclusão prévia foi de que nem em mil corridas
com estas mesmas condições isto ocorreria. Contudo tratava-se de um dia
particular. E por motivações ainda mais inexplicáveis para mim, o pau d’água
decidiu equilibrar-se corajosamente sobre seus próprios pés, o gordo parou
próximo à porta, talvez aguardando para descer em breve, e a loira deslizou
inacreditavelmente até junto a mim, pediu licença e sentou-se ao meu lado.
Decididamente estava com sorte, era uma conclusão irrefutável diante dos fatos
apresentados.
Sentia-me
iluminado. Encorajado pela sequência de eventos recentes iniciei uma observação
despretensiosa da moça com o canto dos olhos. De perto ela era ainda mais
bonita do que aparentara, usava uma saia curta e uma meia calça escura e
exalava um aroma levemente adocicado. Porém não conseguia visualizá-la em sua
totalidade, apenas seu perfil esguio e sisudo me era acessível daquela posição.
O livro aberto em minhas mãos já não fazia mais sentido algum, as palavras se
embaralhavam naquele perfume e um mero descruzar de pernas me levou as alturas
mais distantes. Só fui capaz de retornar ao ônibus quando ela virou-se em minha
direção e inclinando-se levemente sobre o livro disse “Adoro Kafka”.
A
sentença que flutuou de seus bem desenhados lábios até meus ouvidos incrédulos
soou como um dialeto estrangeiro, num primeiro momento fui incapaz de articular
tais palavras com o livro que estava em minhas mãos. Somente após o auxílio de
seu olhar insistente para o livro compreendi do que tratava seu comentário.
Devo ter parecido um tanto idiota, confesso, mas nada que não fosse remediado
pela conversa sincera e espontânea que entabulamos na sequência da viagem.
Enquanto
versávamos sobre os mais variados temas, não pude deixar de pensar sobre as
condições pretéritas que possibilitaram aquela conversa. Ainda assim a
companhia foi tão agradável, possuíamos tantos gostos e interesses em comum,
que ao fim do meu trajeto peguei seu e-mail, com uma desculpa qualquer de
passar a referência de um livro supostamente do seu interesse.
Porém,
após descer do coletivo, enquanto caminhava chutando as pedras da rua, refleti
profundamente sobre os detalhes da conversa e sobre o contexto da situação.
Olhei bem para o pedaço de papel de caderno rasgado, onde estava anotado o
e-mail, e soltei-o no ar. Uma brisa faceira levou-o aos rodopios para todas as
direções, depois subiu ao céu e desapareceu da minha vista. Era muita sorte
para um dia só.

