sábado, 31 de março de 2012

Gaia


Mudanças nunca são fáceis para crianças. Seus infinitos universos de fantasia estão, na imensa maioria dos casos, presos a minúsculas particularidades da vida real. Cada pequena familiaridade do cotidiano representa uma estrutura fundamental para sua realidade. Por isso, mudanças de cidade nunca são fáceis para crianças. Imagine perder, de uma tacada só, grande parte de suas referências ordenadoras do mundo: casa, professores, amigos e vizinhos. Porém trata-se de um trauma recuperável, a maioria delas é capaz de conformar rapidamente seu universo mágico a nova realidade.
Algumas, no entanto, em geral as mais introvertidas e criativas, apresentam sérias dificuldades em se relacionar com a nova situação. Caso característico do pequeno João. Dono de grandes olhos tristes, João teve sérios problemas para desenvolver novas amizades após a mudança de sua família. Na maior parte do tempo que estava com seus pais mantinha-se alegre e bem disposto, porém qualquer menção sobre a escola ou a rua entristecia o pequeno João. Apreensivo por ver seu filho em semelhante estado, seu pai, lembrando-se de sua remota infância, decidiu presentear João com um amigo canino.
O momento da entrega foi histórico para o pequeno, lembraria-se daquela cena para o resto de sua vida. Seu pai chegando em casa carregando uma grande caixa de papelão perfurada lateralmente por orifício redondos, uma caixa que se movia e fazia grunhidos indecifráveis. Como esquecer tamanha excitação, a curiosidade e a ansiedade, imensas, pareciam não caber em seu pequeno corpo. No fundo sabia do que se tratava, mas não podia controlar a aquela vontade irrepreensível de abrir logo a caixa.
De fato suas suspeitas se confirmaram, um pequeno filhote de cão o aguardava, tão ansioso quanto ele, no interior da caixa. Coberta por uma pelagem branca, um fuço curto e um olhar sagaz, a pequena cadelinha latia e saltava inquietamente na caixa ao ver seu novo amigo. Um elo incrível estabeleceu-se entre eles imediatamente. E em poucos dias aquela pequena bolinha de pelos, destruidora de plantas e sapatos, havia transformado completamente a disposição do pequeno João, e com isto ganho a simpatia de todos na casa.
Mas em que medida ainda somos capazes de compreender a relação entre uma criança e seu cachorro? Creio que com o passar dos anos embrutecemos e perdemos a capacidade de valorizar eventos singulares como sendo únicos e especiais, a experiência nos leva a generalização e a redução destes importantes acontecimentos carregados de enormes significados para uma criança. E assim foi a relação entre João e sua cadelinha, repleta de profundos sentimentos de amizade e carregada de amores incondicionais. Compartilharam muitos momentos e desenvolveram-se, cada um na sua velocidade, ao longo dos anos.
Eis aí o ponto fundamental desta história, o menino e o cão constituíam dois organismos distintos, com diferentes períodos de maturação. Porém, muito embora João compreendesse em partes esta importante diferença, nada o preparou para inevitável experiência da morte. Nada revela, ou afirma, ainda mais a crueza da vida do que a própria morte, seu termino, objetivado assim ao alcance da mão, nos aproxima de nossa verdadeira e efêmera natureza. É uma parte intrínseca de nosso amadurecimento. Mas nem por isto indolor, muito menos quando em circunstâncias tão emotivas quanto estas.
O envelhecimento de sua companheira e a perda gradativa de suas capacidades físicas foi um duro golpe para o menino. Acostumado a contar com ela em todos os momentos, ficou profundamente abalado quando ela adoeceu seriamente pela primeira vez. A possibilidade de sua morte, até então inconcebível, despontou sombriamente no horizonte. Percebendo o drama que se desenhava, seu pai promoveu longas conversas com João sobre o tema, mas sempre num tom otimista de recuperação.
Entretanto, todos têm a sua hora, e nem mesmo o amor mais puro, como o de uma criança por seu cachorro, é capaz de evitar a única certeza absoluta. Foram dias horríveis para a família, João voltara à velha introspecção taciturna e uma atmosfera soturna pesava sobre a casa. Tal como uma ferida aberta que cicatriza com o tempo, com o longo passar dos anos as coisas foram voltando gradativamente à normalidade, o menino recuperou parcialmente sua disposição e a família voltou a desfrutar de um clima cordial.
Porém o pequeno João manteve uma sobra sobre seu olhar, uma lembrança profunda da antiga dor, como uma marca em sua alma que o advertia permanentemente a nunca mais abrir-se de tal forma com qualquer criatura que fosse. Ou pelo menos, não enquanto não surgisse outra cativante cadelinha branca de fuço curto.