Como dizia meu tio, em noites que o espírito parece não caber no corpo a
melhor coisa a fazer é tocar uma, virar para o lado e dormir. Era o que eu
deveria ter feito ao invés de vestir uma camiseta surrada e sair para a rua
naquela noite abafada de primavera. Uma atmosfera inebriante pairava no ar,
pessoas caminhavam em profusão numa espécie de movimento desordenado, como num
chamado da natureza. Havia algo de etéreo na situação, algo na ordem dos
sentidos, uma leve impressão de imaterialidade que lembrava vagamente um sonho
distante, um déjà vu.
Percorri ruas e vielas conhecidas na busca por cigarros e cervejas, mas
por mais que andasse não encontrava os estabelecimentos que procurava, havia
algo de muito estranho naquela noite, o bairro estava exatamente igual ao
usual, mas toda vez que chegava ao destino planejado havia um lugar diferente
do esperado. Após a segunda tentativa frustrada resolvi interagir a fim de obter alguma
informação, só então percebi que as pessoas que por mim passavam não tinham
rosto.
Um borrão disforme ocupava o lugar onde deveriam estar os olhos, o nariz
e a boca dos transeuntes. Tamanho foi meu espanto ao interceptar um sem rosto e
perceber que todos que por mim passavam eram assim, que imediatamente toquei
minha face na procura de um nariz e outras cavidades. Uma breve sensação
alívio. Eu ainda tinha um rosto. Porém era o único a minha volta, o restante da
multidão estava anônimo e sem identidade.
Esfreguei os olhos na esperança de que houvesse algo de errado com a minha
visão, mas apenas as faces das outras pessoas estavam desfiguradas, o restante permanecia focado
e inalterado. Fui acometido por uma tremenda confusão, beirando ao
desespero achei que estava enlouquecendo. Mas num instante de rara lucidez
percebi que podia estar sonhando, um sonho extremamente realista, detalhado e
consciente. Afinal a razão sempre encontra seus meios para explicar o que não
tem sentido, mesmo que seja apelando para uma instância que ela não controla.
Então estava sonhando. Segui caminhando e chutando pedras enquanto
meditava, que constatação estúpida para se ter durante um sonho. Perde todo o
propósito de estarmos sonhando se percebemos que nada daquilo é real, ainda
mais quando percebido desta forma covarde, como um mero simulacro da realidade.
Enquanto pensava e vagava sem destino as pessoas iam desaparecendo das
ruas, e após algumas quadras o bairro estava completamente vazio. Eu estava só
num sonho vívido. Foi quando me ocorreu a tentativa de acordar. Belisquei-me
com vigor, mas nada ocorreu. Tapas na cara também não funcionaram. Apelei para
água, mas foi em vão. Estava preso num universo onírico solitário. Lembrei-me
de um filme onde o cara ficara preso durante vários anos num sonho que não passara
de minutos e tive muito medo de não conseguir mais acordar.
Depois me ocorreu outro filme onde o sonho é apenas o fugaz instante
entre a vida e a morte, e torci para que fosse este o caso, não agüentaria a
sina de viver sozinho durante uma vida inteira. Por fim pensei na Alice e em
seu mundo de fantasias e tive uma pontada de inveja. Só então me ocorreu que o
sonho é uma ferramenta literária muito usada, e que eu não estava apenas
sonhando. Portanto, ao menos que esta história fosse uma reedição das mil e uma
noites, eventualmente acabaria em breve...

