segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Mais um Noir - Parte 1

Os lençóis grudavam no corpo devido ao calor opressivo, no teto o ventilador girava sem refrescar. Aquela história maluca na minha cabeça não deixava o sono chegar, estava me sentindo num daqueles filmes noir. Já me imaginava em preto e branco, narração em off, um plano vindo de cima, passando pelas pás do ventilador e enquadrando a mim e a deusa deitada ao meu lado na cama.

Todos os clichês estavam presentes; a moça linda e misteriosa, a trama confusa e o caso sem solução. Faltava apenas o detetive particular, solitário e obcecado, cujo papel eu não me encaixava. Na época eu trabalhava de repórter policial de um jornal menor, e estava temporariamente afastado devido a problemas de saúde. Enquanto isso, aquele lindo ser respirava suavemente durante o sono, mas sua história não fazia sentido algum.

Assistia os melhores momentos do jogo quando o interfone tocou, esperei tocar novamente na esperança que fosse um engano. Não era. Ainda não sei bem como ela me convenceu a deixá-la entrar, talvez tenha sido aquele rosto angelical sustentado por um corpo magnífico, ou talvez o medo estampado em seu olhar tenha me comovido. O certo é que ela entrou, e entre lágrimas narrava desordenadamente um assassinato e um complô para matá-la. Eu não ia entendendo nada e já me convencia de que era maluca ou estava drogada. Na primeira menção que fiz de me livrar dela, começou a chorar e soluçar compulsivamente. Abracei-a paternalmente para acalmá-la, após alguns instantes de abraço parecia tranqüilizar-se. Retribuiu meu abraço com um pouco mais de intensidade, apertou minha bunda e tentou enfiar sua língua na minha boca. Resisti bravamente enquanto pude; argumentei que aquilo não estava certo, que eu estaria tirando vantagem da situação, que ela era muito nova para mim, enfim, nada que resistisse aquela volúpia que apenas as mulheres desesperadas possuem.

Na cama, antes de apagar, me contou que tivera um caso com um assessor do governo que fora assassinado, que sabia de coisas que ninguém sabia e por isso queriam eliminá-la. O nome do assessor era muito bem conhecido das páginas de política. A coisa virou policial quando seu carro foi encontrado abandonado numa ponte sobre o lago Paranoá, o corpo, alguns quilômetros abaixo, passou por uma penca de legistas, mas nenhuma autopsia foi conclusiva. Por uma incrível coincidência do destino, o cara era pivô de um escândalo político e estava as vésperas de prestar um depoimento para a policia federal. As últimas novas que eu tinha ouvido eram sobre a intenção da policia civil de encerrar o caso e declarar o suicídio do sujeito. Ou seja, um vespeiro imenso, daqueles que ninguém quer meter a mão.

Imaginei que ela trazia um fato novo que comprova-se o assassinato do político, talvez tivesse presenciado o crime, ou quem sabe possuísse uma carta do tipo “Se algo me acontecer divulgue isso”. Porém o mais estranho era que o caso já estava fazendo aniversário. O que a teria levado a esperar tanto para buscar ajuda? Qual seria sua participação no esquema? Por um bom tempo fiquei apenas ali deitado, pensando na veracidade daquelas palavras e nos próximos passos que daria caso decidisse ajudar aquele lindo anjo. No fundo sabia que já estava atolado nessa até o pescoço.

Continua...

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Formas do Mal

Num banheiro imundo de um bar à beira da estrada, pau numa mão e uma garrafa de cerveja quente na outra. Surge um tipo estranho no mictório vizinho, não reparo nele devido ao código internacional de discrição dos banheiros masculinos. Dou uma sacudida despretensiosa e me dirijo à saída. O tipo se vira e diz “Quero falar contigo”. Contra todas as recomendações paro e olho para ele. Um arrepio gelado sobe pela minha espinha e um gosto amargo cola na minha boca. O cara é magro, veste uma calça jeans e uma camisa branca surrada, seu rosto cadavérico lembra o do Prince em suas piores fases.
Engulo em seco e respondo que não tenho nada a tratar com ele, um sorriso de escárnio se desprende lentamente da sua cara “Mas eu tenho uma proposta muito boa pra ti. Algo irrecusável”. Meu pressentimento de que nada de bom sairia daquele banheiro se intensifica, e por um minúsculo instante questiono minha sanidade mental, o teor alcoólico em meu organismo, minha religiosidade e minha sexualidade.
No fim prevalece meu ímpeto mais mundano “Sem ofensas, mas eu prefiro as mulheres”. O tipo responde com uma gargalhada um tanto exagerada e com uma mão desagradável no meu ombro “Não se trata disso que tu imaginas. Falo de conhecimento e de poder”. Por um instante minhas pernas bêbadas falham, todo sangue do meu corpo parece desaparecer.
Nunca acreditei em nenhum dos lados e nem fiz questão de torcer por nenhum deles, mas também nunca tinha recebido um convite claro para participar do entrevero. Confesso que não estava na melhor condição para avaliar a situação em sua totalidade. Estava na merda já vazia alguns anos, minhas perspectivas passavam longe de ser as melhores e saía de um porre direto para outro. Talvez, por isso uma virada não fosse de todo mal.
Porém não sei ao certo o que me motivou, se foi a aparência do cara ou o contexto que ele escolheu para a proposta. Mas de um impulso respondi que “Não, muito obrigado” e me virando para a porta sai de volta para o bar. Sentei num banco do balcão próximo da saída, e com o olhar fixo na porta do banheiro pedi mais uma gelada. Tremia feito vara verde quando levei a garrafa a boca, acendi um cigarro na cola e fiquei ali esperando aquela criatura sair do toalete.
Um esboço de arrependimento pareceu surgir e um sentimento de "O que tenho a perder" começou a me dominar, mas a falta de coragem impedia qualquer movimento. Lembrei do Dr. Fausto e do Mefistófeles, e pensei que se tivesse feito como o Dr. e pedido para o bicho aparecer em uma forma mais agradável, talvez as coisas seriam diferentes. Talvez um lugar melhor também. Por que raios o Prince? Que bosta de forma para aparecer. Será que ele acha que tá na porra dos anos 80 ainda? Fiquei nessa por algum tempo.
Os poucos bebuns que estavam por lá foram embora e o garçom começou a varrer o chão da pocilga. Percebi que o sol já nascia lá fora quando a porta foi aberta. Desci do meu banco e ganhei a rua. Ao caminhar sem rumo pela calçada, respirando o ar da manhã e sentindo o calor do alvorecer, percebi que tinha tomado a decisão correta. Mais por medo do que por resolução, mas era a escolha mais acertada a ser feita, ou pelo ao menos era enquanto o dia durasse.